segunda-feira, 21 de julho de 2014

Incubus

Aquela situação desagradável começou bem cedo para ela. Tinha apenas 17 anos quando o rubor da juventude cedeu ao aspecto pálido do sobressalto. Primeiro ela sentiu como se houvesse algo estranho em seu estômago. Não borboletas, ou coisas assim (típicas da idade). Era como se tivesse engolido um polvo, e ele permanecesse indigerível dentro dela. E o pior: estava vivo! Sentia com perfeição o mover de sua consistência fria e nojenta. A situação logo piorou, contrariando as previsões dos parentes de que aquilo iria passar, de que era apenas uma “fase”. Todos diziam já ter passado por aquilo. Ela duvidou.
A criatura parecia projetar seus tentáculos esôfago acima, martirizando-a com náusea incessante. Tentou inúmeras vezes induzir o vômito com um dedo, dois e depois três. Em vão. O monstro colocava-se em forma de bolo e obstruía suas vias, sufocando-a. Passou então a fustigar a criatura com refrigerantes e cítricos. Quando o fazia, algo diferente acontecia em seu estômago. O polvo se mexia! Sentiu pela primeira vez que estava em vantagem contra o parasita. Resolveu então atacá-lo com mais força através bebidas destiladas. Ao fazê-lo, sentia terrível efervescência, e estava certa de que o feria mortalmente. Mas após certo tempo, não via qualquer evolução, apenas uma crescente dor de estômago. O monstro ainda estava lá, e além dele, uma úlcera adquirida.
Ninguém acreditava na real causa de sua enfermidade, mas os pais levaram-na ao médico ao verem que definhava dia após dia.
- Doutor, tem algo em meu estômago... – disse a moça, de os olhos marejados.
Com o profissionalismo cansado de quem lida diariamente com hipocondríacos e outros tipos estranhos, o médico indicou silenciosamente que prosseguisse. Ela olhou em volta, inclinou-se sobre a mesa e sussurrou como quem conta um terrível segredo:
- O senhor não vai acreditar, mas estou certa de que é um polvo!
Pela primeira vez o homem destituiu-se daquela postura inatingível. Segurou-se contra a cadeira e esboçou o aspecto de quem acaba de ser esbofeteado. A moça não se conteve e desabou em lágrimas. Finalmente alguém atentara para suas palavras. O ceticismo boquiaberto do médico era melhor que o riso incrédulo da família e amigos. Ele entendeu que tinha um problema, seja de polvo no estômago ou de ordem mental. Aquilo trouxe certo alívio.
- Precisarei fazer alguns exames. – balbuciou o homem.
Naquele momento sentiu-se cheia de esperanças. Detectariam o monstro dentro dela, depois o extrairiam por métodos cirúrgicos e o suplicio teria fim.
O médico abriu sua boca e iluminou com um feixe de luz fortíssima. Segurou-lhe a língua com auxílio de um palito e ela sentiu o monstro vir com o refluxo. No entanto, a criatura entalou à altura de sua caixa torácica e o doutor nada pôde ver. Após algum tempo, o médico abandonou sua boca. Ela insistiu para que olhasse um pouco mais. Mas claro... O maldito monstro aquietou-se como que dotado de uma consciência maligna e o médico nada pôde ver.
Conduziram a moça a uma maca e a enfermeira passou um gel em sua barriga. Explicou-lhe que realizaria um ultra-som, e que se houvesse algo dentro dela, seria detectado. A jovem olhou esperançosa para o monitor. Nada. Tomou o objeto das mãos da enfermeira e ela mesma operou. Nada além de vácuo. Soube naquele momento que a medicina não poderia ajudá-la.
Passou a crer que um demônio habitava seu corpo. Já assistira filmes assim... Eram sempre jovens como ela a quem os espíritos imundos possuíam. Os médicos faziam exames e nada detectavam. Temeu que lhe acontecesse o mesmo que Reagan ou Emily Rose. Fez orações, mas achou que sua fé fosse insuficiente. Comungou, ingeriu todo o sal que pôde, e até água benta. Nada funcionou.
Perdia peso dia após dia, assim como o aspecto saudável da pele. Era ingenuidade esperar que a criatura saísse... Racionalizou que seria uma terrível experiência ter de puxar seus membros interminavelmente viscosos através de sua boca escancarada. Passou a temê-lo. Deixou-o em paz. Talvez pudesse se acostumar, conviver com ele pelo resto da vida. Talvez o tempo passasse e nem o notasse mais. Talvez ficassem tão próximos, tão intimamente ligados, que ele se tornaria parte dela.
Suportou aquela gestação por longos e intermináveis meses, como quem carrega o filho do diabo no ventre e tem a responsabilidade de cuidar-lhe bem. Acreditem ou não, a situação melhorou depois que adotou essa nova postura. Entendeu que se o satisfizesse, teria alguns momentos de paz.
Não saia mais de seu quarto nem frequentava a escola. Os pais sentiam-se culpados por não terem considerado os primeiros sintomas e aceitavam a sua reclusão . Devotaram-se à fé e não perdiam uma cerimônia sequer da igreja. Era mais fácil aceitar as promessas de cura e galardões celestiais que internar a filha em uma instituição mental. Contentavam-se quando ela devolvia o prato vazio ou viam seu rosto por uma fresta na porta.  Justificavam as olheiras pelo excesso de sombras no cômodo. Estava pálida, pois não pegava sol.  Talvez nem estivesse tão magra assim... Não podiam julgar seu aspecto em meio a tanta escuridão. Os gemidos e grunhidos eram provenientes da TV, de algum filme de terror... E quando ouviam a filha falando sozinha, decerto estaria usando o telefone e se comunicando regularmente com alguém. Sua voz tinha um tom suave, afinal. Talvez fosse o rapaz  hipotético por quem se apaixonara no início de tudo e ele a resgatasse daquela situação.
“Tudo melhorará”. A moça comungava do mesmo pensamento dos pais. Acariciava o ventre e cantava para criatura que em breve nasceria. Dizia-lhe palavras de afeto e saciava seus desejos. Alguns deles envolviam comer baratas do banheiro ou a cabeça dos pássaros que batiam frequentemente contra sua janela. O fato é que a criatura sempre lhe indicava o que fazer e lhe enviava a providência necessária.
Após nove meses completos, sentiu que era chegada a hora. Despiu-se e entrou na banheira. As vértebras de sua coluna doíam contra a porcelana e podia ver os ossos salientes de sua bacia. O ventre estava inchado e tomado de veias azuis. Olhou para as próprias pernas e viu-se frágil. Temeu o que viria a seguir. O que faria com sua cria? E se tivesse o aspecto de um polvo? Ou seria um demônio disfarçado em corpo de criança? Chamá-lo-ia Damien e cuidaria dele com ajuda dos pais? Suspirou... Receberia a providência de quem a escolheu para essa árdua tarefa... Confiava nisto.
Concentrou-se no parto e logo vieram as contrações. A criatura movia-se por baixo de sua pele, e parecia não saber como sair. Esmurrava seu corpo de dentro pra fora e era possível ver a forma de mãos contra sua barriga. A moça gritava e pressionava o ventre na esperança de guiar sua cria antes que aquilo a matasse.
Os pais batiam na porta, desesperados. Imploravam para que a filha os deixasse entrar. A mãe não resistiu e tombou desmaiada. O pai finalmente pegou o telefone e discou a seqüência de números que nunca conseguira completar. Em menos de dez minutos a equipe de homens de branco estava à porta do quarto. A mãe ainda estava no chão, pois não conseguira recuperar o alento. O pai afastou-se um pouco, com as mãos na cabeça.
- Teremos que arrombar a porta, senhor. Pedimos que aguarde do lado de fora com sua mulher. Sua filha pode estar agressiva ou em condições desagradáveis. – disse um dos homens.
- Senhorita, se estiver me ouvindo, peço que afaste-se da porta. – disse o outro, em tom imponente.
Três segundos depois a porta cedeu ao chute do homem. O quarto tinha um cheiro insuportável. No chão havia restos de comida, excrementos e animais mortos. Havia uma espécie de móbile feito com bicos e penas de corvos. Nas paredes haviam desenhos infantis grafados em sangue. Aquela decoração mórbida sugeria a espera de um bebê. Os homens foram para o banheiro e lá encontraram a moça. Ela ainda estava na banheira, completamente nua. Foi uma visão dolorosa, pois o aspecto de dor e desespero se sobressaia sobre toda beleza e jovialidade. A pálida e magérrima jovem esboçava um sorriso trêmulo para o ser invisível que embalava em seus braços.
- É um menino... – sussurrou. E o olhar que lançou para os homens lhes encheu de compaixão.
Convenceram-na a entregar a criança imaginária a um dos enfermeiros. A empregada da casa deu-lhe um banho e pôs-lhe roupas limpas. No corredor, o médico da equipe questionava os pais da moça, completamente devastados.
- Sua filha alguma vez esteve grávida ou sofreu violência sexual?
- Não, doutor. Não que saibamos... – balbuciou o pai, tentando conciliar fala e emoções.
- Há quanto tempo o comportamento dela mudou?
- Há alguns meses... Seis... Começou em fevereiro deste ano... Então são oito...Nove meses. Nove meses...
- Receio que sua filha tenha tido uma espécie de gravidez psicológica. No entanto isto provavelmente está associado a um transtorno psicológico, dado o cenário com que nos deparamos. Teremos de levá-la conosco. Ela precisa de ajuda profissional.
E assim foi feito. Pela primeira vez em tanto tempo a moça sentiu-se aliviada. Não precisaram de camisa de força para levá-la. Os enfermeiros participavam da encenação para não contrariá-la. Disseram-lhe que a levariam para um lugar onde teria assistência médica para ela e o bebê. A mãe chorou ao vê-la se afastar trajando o vestido rosa preferido, que agora parecia ter 5 números a mais que o ideal para seu corpo. Ela entrou na van com bastante cuidado para não acordar a cria invisível que carregava nos braços.
Durante algum tempo o médico do sanatório foi complacente com os delírios de maternidade. Mas certo dia o homem resolveu adquirir uma postura enérgica que presumiu ser crucial para o a cura. Ele entrou no quarto e tomou-lhe o bebê. A moça imediatamente incorporou a fêmea que defende a cria. Agrediu o médico e bateu-se contra as paredes até ser neutralizada pelos seguranças do hospital que lhe injetaram poderoso tranqüilizante.
Nos dias que se seguiram ela entrou em profunda depressão. Recusava-se a comer, higienizar-se e falar. Quando o efeito dos remédios passava, ela gritava de forma tão penosa que comovia a todos no sanatório. Os pacientes se alvoroçavam e alguns até choravam. Os enfermeiros tratavam de sedá-la rapidamente. No entanto, após sessões diárias com psicólogos e psiquiatras, o quadro foi se revertendo. O médico afirmava insistentemente que tudo não passou de um delírio e que jamais existira algum bebê. Dizia-lhe que era jovem e que poderia ter filhos reais. Com o tempo a moça foi lembrando de que nunca desejara aquela gravidez e sobre como aquilo foi um fardo desde o início. Deu-se conta de que a forma que embalara em seus braços não tinha traços humanos. Não recordava com perfeição de seu aspecto, mas tinha certeza de que não era uma criança. Era apenas um borrão escuro e essa memória se fragmentava dia após dia.
Depois de dois semestres internada, recebeu alta e um atestado de sanidade mental. Os pais a receberam com demasiado carinho. Organizaram uma discreta e calorosa festinha. Os parentes mais próximos presentearam-na com flores, chocolates, ursinhos de pelúcia e até um lindo gato persa. Todos disfarçaram bem o nervosismo em tê-la de volta. Ela própria portou-se melhor que o esperado. Era como se nunca tivesse mudado. Como se tivesse voltado de uma longa viagem. Ninguém mencionava a desgraça que lhe ocorrera. Por sorte sua tia tagarela entreteve a todos com suas aventuras recentes na África e o affair com um modelo 20 anos mais novo.
Quando todos foram embora, sentiu-se em casa novamente. Por trás da infantil decoração de boas vindas, tudo permanecia igual. A posição da mobília, o cheiro da madeira, as sombras da rua projetadas na cortina da sala.  Apostou consigo mesma que na cozinha tinha bolo de nata e estava certa.  No entanto, tinha receio do que a esperava no andar de cima.
Encheu-se de coragem e subiu as escadas antes que os pais percebessem que estava adiando esse momento. Caminhou lentamente até a última porta do corredor. Envolveu o gélido e redondo trinco com toda a palma de sua mão. Suspirou entrou. Foi surpreendida por um quarto completamente redecorado. De início estranhou o ambiente, mas soube que seria melhor assim.
As memórias antigas daquele cômodo ainda causavam dor, e por este motivo tratou logo de afastá-las. Não havia resquício visível do ocorrido e ela não procuraria. Não! Ainda que soubesse o que existia por trás do papel de parede florido. Que naquele ambiente tão bem camuflado estivessem grafadas as impressões mais fieis de sua loucura. Que no compartimento secreto do assoalho estivessem guardados seus tesouros mórbidos. De certo ainda estariam lá! As páginas escritas em sangue. Os ossos de aves. As pedras estranhas que vomitara. Desde a infância, os pais nunca descobriram os segredos que escondia embaixo daquela pequena tábua solta. Suou frio. Rangeu os dentes. Jamais teria paz enquanto aquilo estivesse lá! Seria como uma fruta podre em uma cesta, que contamina todas as demais. Como uma treva viva e pulsante, que cresce até se apoderar de tudo. No entanto, não tinha coragem de ir lá e desfazer-se de tudo.
Deitou-se na cama e não pôde dormir. Seu corpo estava alerta e as próprias substâncias tratavam de afastar o sono. Não poderia chamar os pais, pois atestaria contra si mesma. Pensariam que não estava pronta para voltar ao convívio social. A esta altura, ela também duvidava.
Pegou seu cobertor e finalmente saiu do quarto. Desceu as escadas silenciosamente e deitou-se no sofá. Ninguém poderia julgá-la por dormir na sala. Era compreensível que sua adaptação fosse gradativa. Era melhor que contar a verdade que expor os pais a desagradáveis objetos que remetiam aos meses mais dolorosos da família. Com o tempo, ela criaria coragem e removeria sem que percebessem. Suspirou. Sentia-se segura e aconchegante no sofá. O sono finalmente veio e dormiu sem ao menos perceber.
Não soube quanto tempo dormiu. De súbito acordou, mas não pôde abrir os olhos. Era como se apenas sua consciência tivesse despertado, enquanto o corpo permanecia adormecido. Estava paralisada, mas seu coração batia em um ritmo extremamente rápido. Realizava um esforço sobre-humano no afã de mover-se, mas os membros respondiam vagarosamente aos estímulos. Tentava gritar por ajuda, mas tudo que saia de sua boca eram gemidos pastosos e inaudíveis. Temeu continuar com aquele esforço e sofrer um ataque cardíaco. Tentou acalmar-se, conciliar corpo e mente. Finalmente pôde abrir os olhos, mas o que viu era terrível! Era demoníaco! Uma figura negra estava sobre seu corpo! Tinha formas de um homem de altura descomunal. De sua cabeça saiam grandes chifres e suas pernas pareciam as de um centauro. No entanto, não podia ver suas feições. Se as visse, talvez sua morte fosse súbita tamanho seria o pavor. Deveria ser o próprio diabo. A terceira dimensão de sua sombra. Sua manifestação maciça, inegavelmente real.
Embora não pudesse ver seu rosto, sabia que estava irado por ter desprezado seu filho. Por não ter desempenhado bem seu papel de mãe. Ele estava lá para realizar sua vingança. Para possuí-la novamente. Para mostrar que não poderia fugir de seu desígnio. Suas mãos grandes rasgavam-lhe as roupas, e laceravam as fibras do abdômen com a mesma facilidade.  Dor e pavor tinham as mesmas proporções naquele momento. Cravou as garras em volta dos seios, perfurando até os pulmões. A moça golfava sangue enquanto o demônio a possuía em um coito animalesco.  Era rasgada ao meio por aquele membro desproporcional ao corpo de qualquer mulher. Sentia que seu corpo seria despedaçado a qualquer momento, e tudo que pôde fazer foi entregar-se à morte.
No dia seguinte, seu corpo foi encontrado pelos pais enquanto desciam para o café da manhã. A casa estava completamente fechada, sem sinal algum de arrombamento. Os pais se divorciaram e por fim, entregaram-se por definitivo à fé. O psiquiatra escreveu livros e estrelou alguns documentários. Os jornalistas exploraram o ocorrido de todas as formas possíveis. Um ano depois, um filme intitulado de “The Devil’s Bride” seria recorde de bilheteria e consagraria para sempre a carreira de Anne Lavigne como estrela de Hollywood.

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...