Tomei a pequena taça e, num gole precipitado, ingeri toda aquela substância cristalina. No entanto, antes mesmo que o líquido percorresse minha garganta por inteiro, já estava curvada sobre meu ventre. Aquilo queimava cada célula percorrida e eu podia sentir a textura inchada de minhas papilas gustativas. Gemi e roguei pragas desconexas, mas não pude recolher minha língua de volta à boca. Esgueirei-me penosamente em busca de apoio. Com aspecto de cão hidrofóbico, salivava excessivamente sobre meu próprio corpo. Olhei suplicante para meu mentor, tentando conter aquela terrível ânsia de vômito. Ele riu e disse-me que ainda era fraca, mas deveria aguentar. Segundo ele, aquele suplício era comum a todos os iniciantes. Além do mais, era o preço a se pagar... Eu duvidei que alguém pudesse se acostumar com aquilo. Estava certa de que aquele líquido poderia matar alguém. Se no inferno houvesse água destinada à tortura das almas, deveria ser como aquela substância de falsa pureza. Recolhi a língua e cerrei os dentes. Não havia nada a fazer, senão aguentar. Aquilo já estava dentro de mim, afinal... No entanto, surpreendi-me ao ter uma rápida recuperação. A agonia cedeu à dormência e tontura. Com voz pastosa, perguntei o que viria adiante.
Meu mentor aproximou-se de mim com as mãos estendidas. Demorei a distinguir o que era real entre os seis vultos de braços que via. O homem segurou minhas mãos em forma de concha e nelas depositou um pequeno recipiente. Disse-me que tivesse cuidado, ou deixaria a mágica cair. A voz dele parecia produzir ecos no lugar, e o frio nos abandonara por completo. Imaginei que fosse este o motivo de o meu mentor estar de peito nu. Eu não havia notado sua nudez até então e tampouco conseguia lembrar em que momento ele se despira. Não distinguia, porém, os traços de seus músculos e outras peculiaridades. Tudo era um borrão com aparência de pele, vez ou outra iluminado por um feixe de luz azul de origem desconhecida para mim.
Ele mandou que eu aspirasse o conteúdo do recipiente. O pó tinha uma cor branca que eu conseguia distinguir bem apesar da escuridão. Sem questionar, funguei até meus pulmões não suportarem mais tanta mágica e ar. Meu nariz e lábios ressecaram, e o fundo de minha garganta amargou. Continuei a fungar com força para que tudo descesse até o fim de meu corpo. Fechei os olhos com bastante força, e uma poderosa energia tomou meu corpo. Segundos depois comecei a flexionar meus joelhos no ritmo dos derbaks e alaúdes que soavam em minha mente. Tombei a cabeça para trás, rindo. Desenhava com ela infinitos e espirais no ar, numa sincronia perfeita entre pescoço e cabelos. Iniciei uma espécie de dança tribal, e senti que eu havia inventado aquilo, que era o ritmo de meu corpo, de meu sangue e órgãos. Serpentava em movimentos sinuosos, enquanto meu mentor ria e dizia que eu liberasse o que havia em mim. Naquele momento eu era o ser mais importante do universo, mas também o mais sujo. Queria rastejar sobre o chão, como a cobra que era. Eu tinha liberado grande parte de mim, mas queria destituir-me também de toda a culpa e impureza. Mas aquilo era impossível. Certamente adquiriria novas máculas após o fim daquela experiência e enquanto eu vivesse.
Segui a música e por trás daquelas notas eu encontrei uma lâmina. Venerei-a como o mais sagrado e oportuno dos objetos. Meu mentor pediu que entregasse a ele, que não usasse aquilo contra mim, que a mágica acabaria e só restaria o fim... Que não haveria nada além daquilo, e se houvesse, seria fogo e tortura.
- Ofereço-te liberdade e você escolhe a morte... – desabafou, perplexo.
- Tua libertação é temporária, insuficiente para mim...
- Um momento de liberdade deveria valer a vida inteira. Mas se não for suficiente, posso te oferecer mais. Sabes que te amo e que não há nada que não te daria.
- Sei que podes me dar, e voltarei por mais. Não te preocupes, pois ainda não busco a morte. Só quero livrar-me um pouco mais de mim.
“Estou jogando o jogo que me levará para o fim. Esperando a chuva para lavar quem eu sou...”
Forrei o piso com um véu de seda e fui ao chão, sem sentir o real impacto em meu corpo. Recompus-me, sentei em lótus e ergui a lâmina com as duas mãos, fazendo aquilo parecer um ritual também. Notei que meu mentor desviara o rosto de mim. Magoei-me com aquele gesto. Como ele poderia ter zombado de mim quando ingeri a o cuspe do diabo e agora fraquejava diante de algo tão simples?! Talvez não o fosse, mas naquele momento eu era forte e tudo era pequeno demais para me causar danos significativos. Por esse motivo, apliquei grande força quando passei a lâmina sobre meu pulso esquerdo. Naquele momento eu recobrei a perfeita visão e fiquei nauseada ao ver o generoso sulco que abri. As fibras ainda brancas irrigaram-se rapidamente com o sangue escuro. A ferida golfava e engasgava em borbulhas de sangue. Deitei-me no chão e fechei os olhos a fim de não sucumbir ao mecanismo natural do desmaio. No entanto, não sentia dor alguma. Temi que aquela dormência me impedisse de ver a chegada da Morte. De fugir dela, quando viesse. Para diminuir a hemorragia, ergui meu antebraço. E como era frio o sangue que escorria! Ele se ramificava em meia dúzia de filamentos em direção a meu cotovelo.
Os olhos preocupados de meu mentor indagavam-me se estava bem. Menti que tinha tudo sob controle e tentava manter minhas palavras lúcidas, apesar do torpor e de toda aquela mágica. Ele deitou-se sobre meu corpo e me aqueceu, pois era frio novamente. Mantinha sua promessa de me proteger, apesar de meu declínio. Ao recobrar o alento, livrei-me do cerco de seus braços. Pedi que me ajudasse a levantar, e que dançássemos. Ele também aspirara a mágica e tinha consigo o seu próprio ritmo.
Toquei meu pulso aberto e com dois dedos, tingi de sangue as maçãs de meu rosto. Olhei meu mentor com aquele aspecto de índia-cara-pálida. O olhar com que me retribuiu não tinha mais traços de preocupação. Seus olhos ardiam na penumbra e brilhavam ao serem atingidos pelo feixe de luz azul. Toquei novamente a ferida e desenhei com meu sangue em suas costelas. Ele tomou meu pulso e quis beber o que dele fluía. Eu disse que não. Que antes bebesse do veneno da mais peçonhenta cobra à sorver aquela seiva imunda. Então ele me apertou contra o seu peito e dançamos impregnados com aquele cheiro de ferro.
Senti-me tão compreendida e tomada de emoção que quis chorar. Aquele rapaz, tão jovem para ser guia, tinha uma sabedoria de mim que ninguém mais possuía. E era o único na terra que, me amando, permitiria que eu descesse mais fundo. Que eu rolasse em minha própria lama ou a bebesse em copos de cristal. Brindaria comigo, inclusive. Se eu o convidasse a matar, incendiar, demolir, a resposta seria: “quando?”. Isso não se devia apenas ao fato de me amar. Mas pela coragem contida em cada fibra de sua consistência.
Aquela noite, realizamos muitos prodígios. Meu mentor virou um deus egípcio e tinha o dom de apalpar o vento. Mas tudo a meu respeito era dor...
Meu mentor aproximou-se de mim com as mãos estendidas. Demorei a distinguir o que era real entre os seis vultos de braços que via. O homem segurou minhas mãos em forma de concha e nelas depositou um pequeno recipiente. Disse-me que tivesse cuidado, ou deixaria a mágica cair. A voz dele parecia produzir ecos no lugar, e o frio nos abandonara por completo. Imaginei que fosse este o motivo de o meu mentor estar de peito nu. Eu não havia notado sua nudez até então e tampouco conseguia lembrar em que momento ele se despira. Não distinguia, porém, os traços de seus músculos e outras peculiaridades. Tudo era um borrão com aparência de pele, vez ou outra iluminado por um feixe de luz azul de origem desconhecida para mim.
Ele mandou que eu aspirasse o conteúdo do recipiente. O pó tinha uma cor branca que eu conseguia distinguir bem apesar da escuridão. Sem questionar, funguei até meus pulmões não suportarem mais tanta mágica e ar. Meu nariz e lábios ressecaram, e o fundo de minha garganta amargou. Continuei a fungar com força para que tudo descesse até o fim de meu corpo. Fechei os olhos com bastante força, e uma poderosa energia tomou meu corpo. Segundos depois comecei a flexionar meus joelhos no ritmo dos derbaks e alaúdes que soavam em minha mente. Tombei a cabeça para trás, rindo. Desenhava com ela infinitos e espirais no ar, numa sincronia perfeita entre pescoço e cabelos. Iniciei uma espécie de dança tribal, e senti que eu havia inventado aquilo, que era o ritmo de meu corpo, de meu sangue e órgãos. Serpentava em movimentos sinuosos, enquanto meu mentor ria e dizia que eu liberasse o que havia em mim. Naquele momento eu era o ser mais importante do universo, mas também o mais sujo. Queria rastejar sobre o chão, como a cobra que era. Eu tinha liberado grande parte de mim, mas queria destituir-me também de toda a culpa e impureza. Mas aquilo era impossível. Certamente adquiriria novas máculas após o fim daquela experiência e enquanto eu vivesse.
Segui a música e por trás daquelas notas eu encontrei uma lâmina. Venerei-a como o mais sagrado e oportuno dos objetos. Meu mentor pediu que entregasse a ele, que não usasse aquilo contra mim, que a mágica acabaria e só restaria o fim... Que não haveria nada além daquilo, e se houvesse, seria fogo e tortura.
- Ofereço-te liberdade e você escolhe a morte... – desabafou, perplexo.
- Tua libertação é temporária, insuficiente para mim...
- Um momento de liberdade deveria valer a vida inteira. Mas se não for suficiente, posso te oferecer mais. Sabes que te amo e que não há nada que não te daria.
- Sei que podes me dar, e voltarei por mais. Não te preocupes, pois ainda não busco a morte. Só quero livrar-me um pouco mais de mim.
“Estou jogando o jogo que me levará para o fim. Esperando a chuva para lavar quem eu sou...”
Forrei o piso com um véu de seda e fui ao chão, sem sentir o real impacto em meu corpo. Recompus-me, sentei em lótus e ergui a lâmina com as duas mãos, fazendo aquilo parecer um ritual também. Notei que meu mentor desviara o rosto de mim. Magoei-me com aquele gesto. Como ele poderia ter zombado de mim quando ingeri a o cuspe do diabo e agora fraquejava diante de algo tão simples?! Talvez não o fosse, mas naquele momento eu era forte e tudo era pequeno demais para me causar danos significativos. Por esse motivo, apliquei grande força quando passei a lâmina sobre meu pulso esquerdo. Naquele momento eu recobrei a perfeita visão e fiquei nauseada ao ver o generoso sulco que abri. As fibras ainda brancas irrigaram-se rapidamente com o sangue escuro. A ferida golfava e engasgava em borbulhas de sangue. Deitei-me no chão e fechei os olhos a fim de não sucumbir ao mecanismo natural do desmaio. No entanto, não sentia dor alguma. Temi que aquela dormência me impedisse de ver a chegada da Morte. De fugir dela, quando viesse. Para diminuir a hemorragia, ergui meu antebraço. E como era frio o sangue que escorria! Ele se ramificava em meia dúzia de filamentos em direção a meu cotovelo.
Os olhos preocupados de meu mentor indagavam-me se estava bem. Menti que tinha tudo sob controle e tentava manter minhas palavras lúcidas, apesar do torpor e de toda aquela mágica. Ele deitou-se sobre meu corpo e me aqueceu, pois era frio novamente. Mantinha sua promessa de me proteger, apesar de meu declínio. Ao recobrar o alento, livrei-me do cerco de seus braços. Pedi que me ajudasse a levantar, e que dançássemos. Ele também aspirara a mágica e tinha consigo o seu próprio ritmo.
Toquei meu pulso aberto e com dois dedos, tingi de sangue as maçãs de meu rosto. Olhei meu mentor com aquele aspecto de índia-cara-pálida. O olhar com que me retribuiu não tinha mais traços de preocupação. Seus olhos ardiam na penumbra e brilhavam ao serem atingidos pelo feixe de luz azul. Toquei novamente a ferida e desenhei com meu sangue em suas costelas. Ele tomou meu pulso e quis beber o que dele fluía. Eu disse que não. Que antes bebesse do veneno da mais peçonhenta cobra à sorver aquela seiva imunda. Então ele me apertou contra o seu peito e dançamos impregnados com aquele cheiro de ferro.
Senti-me tão compreendida e tomada de emoção que quis chorar. Aquele rapaz, tão jovem para ser guia, tinha uma sabedoria de mim que ninguém mais possuía. E era o único na terra que, me amando, permitiria que eu descesse mais fundo. Que eu rolasse em minha própria lama ou a bebesse em copos de cristal. Brindaria comigo, inclusive. Se eu o convidasse a matar, incendiar, demolir, a resposta seria: “quando?”. Isso não se devia apenas ao fato de me amar. Mas pela coragem contida em cada fibra de sua consistência.
Aquela noite, realizamos muitos prodígios. Meu mentor virou um deus egípcio e tinha o dom de apalpar o vento. Mas tudo a meu respeito era dor...
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