sexta-feira, 2 de maio de 2014

Quetiapina

Naquela manhã, ela desistira de convencer a todos de sua inocência. Afinal, não estava mais tão certa da ausência de culpa naquele assassinato. Todas as evidências apontavam para sua condenação, e o fato de não possuir memória qualquer do ocorrido não era mais tão relevante. Era bem possível que estivesse louca, desprovida de importantes faculdades mentais. Diante de todos aqueles fatos tão claramente expostos, das reconstituições perfeitamente articuladas, da concisa teia de argumentos, creu-se culpada.
Amara aquele homem. Vivenciara as fases do luto (maior parte delas na cadeia, aguardando julgamento). Bateu-se contra grades e paredes, abrira um sulco na testa. Chorou e gritou até que uma carcereira menos paciente a silenciasse com um golpe de porrete. Aprendeu a sofrer baixinho e engasgar-se com os próprios soluços. Mas agora,diante daquele tribunal, sentia-se vazia. A dor corroera-lhe a estima e as forças. Não podia mais firmar-se em sua própria mente, em suas convicções.
O burburinho da corte agia como um mantra, induzindo-lhe a um profundo estado de meditação. Divagava sobre outras situações em que poderia ter sido agente ou vítima de um crime. Perguntava-se que outros delitos teria cometido sem que pudesse recordar, arrepender-se ou vangloriar-se... Se teria sido molestada, uma ou mais vezes. Sentiu-se paranóica ao imaginar que poderia ter um agressor em seu estimado círculo de amizades. Rostos conhecidos apareciam em turbilhões de flashs, oscilando e repetindo-se em padrões agonizantes. Podia ver os traços mais marcantes de cada um e por um momento desprezou terrivelmente aqueles olhos, dentes e bocas que antes admirava.
Uma mão preocupada resgatou-lhe do abismo mental em que estava. Surpreendeu-se em uma expressão dolorosamente rígida. Dentes trincados, lábios contritos, uma ruga acentuada entre os olhos. O advogado tomou-lhe o punho e perguntou se estava em condições de continuar aquela audiência. Disse-lhe que poderia tentar uma prorrogação e explicou que seria conveniente para elaborar uma defesa melhor. Pálida, acenou negativamente. Sabia que suas chances eram nulas. Apenas queria que aquilo terminasse, de uma forma ou de outra.
Seu único capricho era ingressar em uma instituição mental. No entanto, temia que isto soasse como o velho artifício de alegação de insanidade do qual tantos sujeitos vis se valiam para driblar a justiça. Doía-lhe que a possibilidade de acharem que ela tentaria reduzir a pena por matar seu homem. Gostaria de jurar a todos naquele tribunal de que não o faria. De que seu castigo a açoitaria onde quer que estivesse. Gostaria de jurar gritando,e que a verdade rasgasse sua garganta de forma tal que todos cressem.
Surpreendeu-se novamente naquela expressão dolorosa, e pensou que talvez não devesse mais conter. Talvez aquela incapacidade de manter feições sadias testificasse de vez sua loucura. Precisava de um diagnostico, de um laudo, de qualquer coisa que atestasse sua condição mental. Precisava para si, para entender-se por fim. A incômoda idéia de não recordar-se de importantes fatos novamente a assombrava. Um hipnotista! Era o que precisava. Quando terminasse a audiência, pediria ao seu advogado que estudasse esta possibilidade.  
- Onde a senhorita estava na manhã em que a vítima foi assassinada?
- Estava em casa até as oito. Depois fui para o trabalho.
- Poderia fazer um breve relato de suas ações até o horário em que saiu de casa?
- Acordei as sete, como de costume. Foi quando vi a mensagem em meu celular...
- Sua primeira reação ao acordar foi olhar seu celular? – interrompeu o juiz.
- Sim, Meritíssimo. É um hábito. É sempre a primeira coisa que faço, pois durmo com ele ao meu lado. Fiquei um tanto confusa ao ler, mas continuei minhas atividades normalmente. Alimentei meus bichos, tomei banho... Vesti-me. Não tomei café, pois estava um pouco atrasada... Fui para o serviço.
- Atrasou-se?
- Sim, pois perdi algum tempo pensando sobre como responderia meu namorado.
- O que exatamente dizia a mensagem?
- Dizia que o bolo que eu tinha lhe dado estava péssimo. Que parecia uma mistura de excrementos e veneno. Perguntou-me se era alguma vingança.
- E o que a senhorita respondeu?
- Pensava que fosse alguma brincadeira, um exagero. Brinquei e disse que eu deveria ter colocado arsênico demais durante o preparo. Em seguida desculpei-me, pois desde o início sabia que o bolo não estava tão bom. Não sou boa confeiteira.
- Depois disso, qual o próximo contato com a vítima?
- Mandei-lhe outras mensagens. Perguntei se estava bem, mas não obtive resposta. Após um dia inteiro sem ter contato com ele, resolvi ir a sua casa na manhã seguinte, antes do trabalho.
- A que horas a senhorita chegou lá?
- Aproximadamente 7:30. Toquei a campainha insistentemente e esmurrei o portão após 10 minutos. Ele não veio abrir, mas seu carro estava lá. Seu cachorro de estimação latia como louco. Resolvi pular o portão. Abri a porta de entrada facilmente com um chute, pois é velha e defeituosa. Quando entrei na cozinha ele estava lá, caído. Sua pele estava muito escura e tinha aquela substância endurecida em sua boca... Acho que era vômito. Sua língua estava esticada para fora da boca escancarada.
- Esta recordação lhe comove?
- Sim, senhor. Sei que todos esperam que eu chore, mas por algum motivo não consigo mais.
- Alguma vez a vítima lhe agrediu, física ou verbalmente? Fez algo que lhe suscitasse ódio, raiva ou desejo de vingança?
- Não... – fez uma pausa ao sentir um terrível calafrio percorrer sua espinha. Não entendeu aquela reação. Ocorreu-lhe novamente a possibilidade de não lembrar os fatos como eles verdadeiramente eram. – Eu o amava... Acho... – engasgou. - Perdoe-me, eu não sei mais. Não posso confiar na minha mente.
Houve uma inquietação na corte, e os murmúrios tornaram-se vaias. Ela apenas fechou os olhos e esperou que o juiz silenciasse a todos com as batidas de seu martelo. Buscou dentro de si o que houvesse de amor, saudade e dor. Esperou que as lágrimas forçassem suas pálpebras, mas seus olhos estavam secos ao encarar a massa furiosa.
- A causa mortis apontada pelo legista foi envenenamento por arsênico, substancia esta citada em sua mensagem à vítima. Como explica esta “coincidência”?
- Sou uma grande fã de Agatha Christie. Hercule Poirot... Miss Marple... Sempre desejei que ela fosse minha avó... – riu, enquanto parecia lembrar os enredos – Agatha Christie matou vários personagens com arsênico. Achava que tinha certo charme... Matar alguém com arsênico. Teve a história dos bombons envenenados. Aliás... No caso dos bombons não foi arsênico. Cianureto, certo? Enfim... Mencionei arsênico em tom de brincadeira. Nada sei sobre essa substância ou como consegui-la.
Juiz e promotor entreolharam-se. A corte novamente explodiu em acusações, desrespeitando as regras de conduta no tribunal. A audiência foi encerrada a fim de conter os ânimos. Puseram-lhe as incômodas algemas e encaminharam-na para viatura. O que a lei, a mídia e a multidão de justiceiros civis não sabiam é que no mundo não existia clausura semelhante à de sua mente. Jamais poderia libertar-se dela. No entanto, duvidava que esta perpétua prisão possuísse limites.
Sua mente... hora Patmos, hora limbo, hora universo infinito. Talvez houvesse algo de bom em não conhecer-se. Poderia desligar-se do mundo finalmente. Contrair-se e depois expandir. Viver o onírico de forma gratuita. Imaginar era tão bom... Sempre fora o melhor passatempo, desde criança. Criava toda sorte de aventuras antes de dormir e continuava em sonho.
Gotas de chuva salpicavam o vidro do carro assim como novas lembranças surgiam. Tinha a amiga imaginária de pele verde e cabelos roxos... Tinha também os amantes feitos de sombra que ela mesma projetava na parede do quarto. A mulher loura, o velho que subia em sua cama... Imaginava o tempo todo! Tanto que dormia durante as aulas. Mesmo quase reprovando por tantas divagações, sentia-se especial. Pensou que deveria sentir-se assim novamente. Aquilo poderia ser encarado como doença, ou como dom.
Na verdade, era um ser fantástico! Eram tantas as peculiaridades sobre si... No intervalo de um minuto, ela poderia flutuar como bailarina e depois incorporar a ginga dos marginais. Cruzar as pernas como uma dama para depois lançar-se em uma postura de alguém sob efeito de drogas.  Falar com toda fluência e depois retrair-se muda a respeito de um assunto qualquer. Era dançarina, mas também queria lutar. Fazer com que todos a sua volta vertessem sangue e suor... Seja pelo amor ou sexo, pela guerra ou pela morte. Talvez por isso conhecesse tão bem as pessoas e quase nunca se enganava. Lamentava, porém, que ela mesmo sendo tantas, não pudesse fazer qualquer julgamento de si.
Sempre desejara matar alguém. Torturar e depois matar. Catástrofes sempre lhe excitaram. Incomodava-lhe profundamente não lembrar detalhes do crime pela qual era acusada. Gostaria de lembrar outros, caso houvesse cometido. Se soubesse que acabaria matando alguém, teria feito cada vez que sentisse vontade. Usaria seu senso de justiça para livrar o mundo de muitos tipos desprezíveis. Empunharia diferentes instrumentos: armas de fogo, punhais, balestras. Atropelaria, armaria emboscadas, atearia fogo. Eram tantas as possibilidades e as vítimas. Faria do mundo seu matadouro clandestino até enfadar-se dos próprios métodos.

Pensar em toda aquela sanguinolência causou-lhe incontrolável excitação. Desejou todos aqueles homens da lei. Insinuar-se-ia para os policiais que a acompanhavam. Era uma longa viagem até o presídio... Chegando ao destino final, assassinaria sua companheira de cela. Tinha vontade de matar e o sangue que estava sobre suas mãos era o que lhe restava. Almejou de todo o coração poder lembrar desse novo crime...

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