Em noites tristes como esta, fico a observar o espaço no jardim onde a grama não cresce. Pensei que ao enterrá-lo, floresceria... Quero deitar-me na terra e beijar o chão sob o qual descansa aquele a quem mais amo. Mas se eu também dormir, serei maldita. Se me recolher mais cedo, não haverá perdão. Dizem que ele não tem alma e que perderei a minha se a ele me juntar. Deveria isto inibir meu querer? Anular meu arbítrio?
Tenho sono.
Sempre me desculpo por não ter sido rápida... “Por ter entendido mal tua postura esquiva. Por ter me ofendido quando recusaste meus beijos. Não sabia eu que teu fim seria em um canteiro qualquer”. “Mas não falarei de ti quando tenho tantos assuntos vulgares para tratar. Dentre eles, minha vida. Mencionarei teu nome quando escrever uma poesia. Ela terá teu nome... Até breve. Vou me entregar ao que mereço. Não a tudo... Senão não voltaria...”
Despeço-me e entro no carro. Como tantas outras vezes, uma lâmina é minha “válvula de escape”. Sempre estremeci ao ouvir expressões covardes como esta. Pois cá estou, escondendo-me atrás de uma penosa junção de palavras. No fim, sei que a Psicologia não me esbofeteará por esconder-me atrás de suas saias. Ela é a madrasta do século, advogada de todos os doentes... Mas seus dedos não afagam meus cabelos enquanto me corto sozinha no carro. Não há substituto perfeito... Não há culpados por minha insanidade...
Conto os dias de clausura nas paredes de meus braços. Quando a lâmina rasga, o sangue esguicha. No começo eu choro e grito. É uma vermelhidão intensa, um cheiro forte. A aquarela de sangue e lágrimas tinge a tudo que encontra e flui como bem quer. Resolve dar novas cores às minhas roupas e a meu rosto. Envereda-se por entre os cristais de minha pulseira e rouba-lhes o brilho. No final é até bonito... Não é apenas dor, é libertação e alívio... Down in a Hole é a trilha de meu declínio e tudo flui em um mesmo sentido... O ritmo decai, a vista escurece, o sangue escorre e os pés formigam lá embaixo... Um suspiro profundo indica que meus pulmões estão novamente calmos e a inquietação passou...
Há quem não entenda, quem sinta pena... Outros me julgam mal. O sangue... diz-se que este salvou a humanidade da danação! Redimiu pecados! A ausência dele em nosso corpo significaria a morte... Os homens se gloriam no sangue de seus heróis e dizem beber o de seu Salvador, mas torcem o nariz ao vê-lo de perto... Não tenho pretensões maiores de ser cristo, não sangro por uma causa maior...
Essa dor física é bálsamo para minha alma contrita, e quando tudo acaba ainda posso dormir. Não é como essas químicas mundanas que tiram o sono, ou te induzem a ele... E depois abandonam seu corpo demente, levando consigo o que te restar de bom. Nenhuma delas foge a essa maldita regra... E você, que quase amou aquilo, agoniza como um porco. Grita, vê monstros na mobília. Amaldiçoa o raiar do dia e quer matar o Sol. Mas agora que perdi a fé nas substâncias e converti-me à dor, posso traçar o ciclo de minha confusão mental. Ela dura entre dez e quinze dias, tempo estimado para pele se reconstruir.
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Os dias têm sido mais longos...
Falta-me pele para esta maso-masturbação da derme. O que restará de mim nos anos de frigidez? Temo o dia em que não me flua mais a vermelha seiva. Que minhas células adquiram a formidável resistência dos mártires. Ou morrerei antes em algum exagero?
Tenho sono... Mas não quero dormir sozinha.
Tenho febre e nem sei mais o que quero.
Não, eu não ouço vozes. As vozes não me mandam fazer nada, pois elas não falam ao meu ouvido. Que diagnóstico mais equivocado...
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Sonho, e em meio ao terror noturno vejo vísceras de quem eu amo. Intestinos completos caem de um ventre aberto em uma poça de lama. Na noite seguinte o encontro saudável, mas o esfaqueio sem motivo aparente. Ele me retribui da mesma forma, mas é estranho pois nenhum de nós morremos.
Declaram-me amor que eu sei não existir.
Encontro Jesus Cristo no peito de um homem.
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Racionalizo, mas o que encontro é impossível se conciliar. Do mundo inteiro, sou a pessoa que mais se auto-perscruta. Duvido porém que isso me redima diante de Deus e dos homens.
Hoje, tudo que faço é tão horrível que apenas escrevo. E o que escrevo, não compartilho. Rasgo, engulo, enterro, queimo.
Oito mil e setenta e sete dias.
Oh não. Está sangrando muito. Eu me abri demais.
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