Eu (que era ela, que era Alice), estava numa casa de paredes cor de rosa. Nelas pendiam duas dezenas de relógios cuco, todos bem ornamentados e em formatos interessantes. Lembro-me de como eram belos os floreios esculpidos naquelas pequenas casinhas de madeira. Passei algum tempo admirando-os, até que todos os ponteiros perfeitamente sincronizados marcaram a hora nova. E pasmem! Em vez de pássaros presos por mola, saíram muitos gatos e coelhos, em disparada. Mas não eram bonecos, ou esculturas, e sim animais vivos, em tamanho real. Era curiosa a habilidade e rapidez com que seus corpos se articulavam para sair dos relógios. E mais digno de admiração era o fato de antes estarem todos lá. Como poderia caber um coelho dentro de uma caixa de poucos centímetros quadrados? Quem dirá dois ou mais.
Eu (que era minha rainha, que era Alice) entendi que também deveria correr, e fugir daquele mal que assustava os pobres animais. Acompanhei-os de pés nus, e quando dei por mim, a cerâmica da casa tornou-se cacos, e depois deu lugar a um frio e boloroso chão de terra. Era noite lá fora, e a vegetação era tão espessa! Eu estava em um bosque, e todos os galhos pontiagudos dos carvalhos apontavam para mim! Eram como dedos acusadores, imputando-me terrível culpa! Circundavam-me como uma funérea guirlanda! Aquilo se tornou claustrofóbico, e o ar, rarefeito. Pela única brecha que havia, pude avistar o céu, e ao longe, um iluminado palácio cor de rosa. Tinha a imponência da arquitetura oriental, e majestosas cúpulas douradas retorcidas como um sorvete. Julguei serem de ouro, pois reluziam um brilho bastante peculiar.
Pensei em refugiar-me naquele lugar. Uma súbita lembrança indicou-me que a câmara dos relógios era lá. Distraí-me ao correr atrás dos gatos e coelhos, e nem percebi que estivera naquele magnífico lugar. Sim! O exterior do palácio tinha o mesmo tom de rosa das paredes dos relógios. Mas antes mesmo que pudesse desenterrar os pés daquela terra movediça, percebi que algo terrível iluminava o céu!
Oh, não!!! Outro pavoroso sinal celeste!!! Quando hei de escapar dessa perseguição covarde? Ou quando serei por fim aniquilada? Qualquer desfecho é melhor que o pavor que me imputam os deuses ao manifestarem sua fúria no céu!
Livrei-me dos galhos, e em um instante estava em campo aberto. Encarei o horrendo prodígio na escuridão. Tinha forma triangular, e era cortado ao meio com uma reta, dividindo-o em dois triângulos menores e iguais. Brilhava em várias cores que desconheço os nomes no espectro da luz. Era como as figuras que se formam por trás de nossas pálpebras quando cerramos os olhos com muito fervor.
Foi adquirindo forma de arco, e percebi que o segmento que o cortava ao meio movia-se. Ele posicionou-se como ameaçadora flecha que os deuses disparariam contra mim. Mais com raiva que com medo, corri para o castelo. Eu não era mais Alice de cabelos negros. Era eu, e minha rainha, em corpos separados. E nós nos beijamos por trás de uma parede. Seu beijo era quente e molhado. Envolver sua cintura importava mais que a fúria de qualquer deus arqueiro.
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