sexta-feira, 2 de maio de 2014

Glay O'Hanne Lindsay

Baseado em um sonho do Glay, a pessoa com o subconsciente mais invejável no mundo (e meu melhor amigo). Não está fiel ao que ele me contou, pois perdi nossos registros de conversa... Não consegui fazer uma correção apropriada, já que minha mente não anda muito boa... Além do mais, tenho certeza que na cabeça dele era bem melhor do que pude converter em palavras, mas espero que ele goste...

---

Com a avidez de um cavaleiro templário, Glay O’Hanne pilotava seu corcel metalizado sobre os cacos que restaram do mundo moderno. Conduzia a motocicleta com a maestria de quem maneja as rédeas de um cavalo bravo. Ela guinchava e empinava, mas sua estrutura forte ainda suportaria muitas milhas de caos... Sabia as peculiaridades daquela máquina como jamais soubera de qualquer pessoa. Jamais confiara um centavo a quem quer que fosse. Jamais entregara seu coração para uma mulher cuidar. Agora confiava sua vida àquela moto... Provavelmente seria o último relacionamento de sua vida. Seu último suspiro seria ao lado dos destroços de sua Shadow... Mas por enquanto, resistiriam. Aquela situação era, de longe, a pior pela qual haviam passado.
As coisas pareciam até belas naquele fim de mundo em que chegaram. A poeira que deixavam para trás adquiria um brilho dourado ao encontrar os feixes de luz do sol. A natureza triunfava sobre o asfalto ferido, que cedia aos cipós e raízes. Uma vastidão de flores margeava o que um dia fora estrada. Elas adquiriam o aspecto de uma enorme e colorida colcha que de certa forma fazia lembrar o aconchego do antigo lar. Todas juntas tinham um perfume delicioso e singular. Por um breve momento pensou em parar e colher algumas, mas a quem presentearia? De seus entes queridos, não restava sequer sepultura para que pudesse depositar aquelas flores e chorar... Todos voltaram ao pó, cumprindo a profecia. E com ele não foi diferente. Também era pó. Um homem quebrado, reduzido a nada. Percebeu quão miserável era quando teve de desenhar o rosto dos que amava, pois as memórias se fragmentavam dia após dia.
“Maldita máquina humana!” - praguejava, ao racionalizar que seu cérebro expulsava lembranças antigas para armazenar todas as novas informações necessárias à sobrevivência.
Tinha ainda o olhar sombrio quando avistou uma espessa cortina de fumaça que se erguia no horizonte, como uma torre negra. Após dirigir alguns minutos sem que chegasse ao foco, deu-se conta de que seria um acidente de grandes proporções. Soube que estava próximo quando teve de desviar de uma enorme placa de metal, e depois doutra. A estrada logo ficou repleta de obstáculos retorcidos e incandescentes. Finalmente pôde avistar enormes destroços do que parecia ser um avião. Absorvido pela possibilidade de encontrar outros seres humanos (ainda que mortos), girou sobre o eixo da moto deixando um forte rastro no asfalto. Tão rápido desceu, que uma nuvem de pétalas e poeira ainda pairava atrás dele quando seus pés tocaram o chão.
Correu o mais rápido que pôde e logo viu uma figura feminina deitada sobre um pedaço de sucata. Extasiado, tombou de joelhos ao lado da mulher. Tomou-se de espanto ao analisar melhor aquela figura pálida e perturbadoramente bela. Não fossem as formas inegavelmente femininas e a delicadeza de suas feições, diria que não era humana. Não tinha cabelos ou sobrancelhas, o que realçava seu aspecto sobrenatural. Os lábios carnudos tinham um excepcional tom de rosa- alaranjado, e pareciam almofadas de veludo. Sua pele era tão branca que em certos pontos parecia brilhar, como mármore... Reclinava-se sobre o metal fumegante sem sofrer qualquer dano pelo calor.
Sobre o corpo esguio repousava um manto translúcido com a mesma tonalidade de sua pele. Uma ponta do tecido estava preso sob o delicado pé, enroscando-se na perna ligeiramente arqueada e deleitando-se nas delícias do desconhecido. O manto seguia cobrindo-lhe o ventre e os seios numa tentativa falha de conter o desejo em quem a visse.
A expressão em seu rosto era indecifrável.  Seus lábios entreabertos ameaçavam romper em um gemido. No entanto não aparentava sofrimento ou gozo, e sim um aspecto imaculado de santa, de agonia e êxtase... Um olhar de mártir, de quem padece todas as dores do mundo, mas contempla o divino no céu...
Não podia esquivar-se do olhar daquela mulher. Seus olhos eram de um azul tão intenso que subjugariam exércitos inteiros diante de tal peculiaridade. À medida que se aproximava dela, era inundado de calor e calmaria, como se fosse uma concha submersa em águas termais... Como se sentisse cada elemento, a energização dos chakras, a influência dos astros... Como se o sol e os ecos do universo o invadissem... Queria mergulhar naquele azul sem despir-se de roupas e calçados, como um pescador tolo se lança ao mar por uma sereia. Podia ouvir sua melodia! Podia ver no fundo! Um vórtice de luz, o brilho de tudo que é precioso e raro! Quis chegar mais perto, intensificar aquela sensação, e quanto mais perto estava, mas cheio se sentia.
Tão cheio ficou que em dado momento não pôde mais suportar tanta plenitude. Aquilo de repente tornou-se um peso, uma terrível pressão contra seu peito, como se o oceano lhe entrasse pulmões adentro e não pudesse contê-lo em si. Não podia respirar ou gritar, apenas deixar-se esmagar em sua impotência. Sentiu que perderia os sentidos e a luz que via no fundo foi escurecendo gradativamente até apagar.
De súbito recobrou a consciência, e lá estava novamente, do lado de fora, no mundo de caos ao qual pertencia, rodeado de sucatas, diante da mulher.  Mas os olhos dela agora eram completamente vermelhos, à semelhança pavorosa de demônios. Eram de uma cor doente, maligna! Seu crânio foi ficando repleto de veias, até que rachasse em vários pontos como a porcelana de uma boneca endiabrada. Sua mandíbula despencou em um riso exagerado e neste momento O’Hanne sentiu-se tomado de pavor... O maior medo que já sentira em toda sua existência.
A vegetação próxima foi murchando e a podridão se alastrando pelos pedaços de sucata, como um fungo escuro de rápida propagação. De alguma forma, o rapaz soube que aquela praga lhe causaria dano caso tocasse alguma parte de seu corpo. Ele iniciou sua fuga, e teve certeza de que era um alvo, pois o ranço avançava rapidamente em sua direção. Ele montou sua Shadow e acompanhava pelos retrovisores a marcha da pestilência. Os campos de flores morriam rapidamente e o asfalto era tomado por nervuras negras a poucos centímetros da motocicleta. Não importava o quanto acelerasse, não conseguia vantagem qualquer naquela perseguição. A praga poderia alcançá-lo se assim o quisesse, mas preferia caçá-lo, alimentar-se do seu desespero e de suas forças.
Em determinado momento percebeu que o pneu traseiro estava tomado por inervações. Era o fim! No ápice da exaustão e desalento, deixou-se derrapar e quis morrer. No entanto, seu corpo nada sofreu além de alguns arranhões. A Shadow, por sua vez, tombou e quicou até desfazer-se em vários pedaços. O’Hanne clamou por sua companheira e chorou como há muito não fazia. O fungo revestiu sua carcaça como uma mortalha, até silenciar os últimos ruídos da motocicleta.
O rapaz não pôde se erguer. Vertia lágrimas, suor, sangue e saliva. Fora derrotado, humilhado. De nada valiam seus músculos, sua consistência e suas faculdades mentais. Nada podia contra aquelas forças demoníacas. O ranço sitiava seus pés, mas não investia contra seu corpo. Esperava que fugisse, para assim persegui-lo novamente. Pois que o matasse de uma vez! Afinal, não entendia o motivo ser o último ser vivo em um mundo pós-apocalíptico. Não lutaria mais. Se houvesse um propósito para sua vida, que o Ser Superior lhe enviasse providência.
Permaneceu catatônico e no fundo de sua mente encontrou lembranças boas... A memória perfeita dos rostos e feições daqueles a quem amava. O rosto do pai, sempre barbeado... As expressões divertidas do irmão... As rugas de afeto e preocupação da mãe... Amigos, professores, seu único amor... Todas aquelas pessoas o rodeavam, em uma espécie de cerco protetor. Uma aura quente os envolvia, como se fossem anjos de luz. Tinham olhar terno e sorrisos sutis.  
Repentinamente a atmosfera pareceu mudar. O demônio do ar soprou seu hálito gélido de maldade e a tudo tingiu de escuridão. Os olhos gentis tornaram-se desconfortavelmente esbugalhados e os sorrisos quase imperceptíveis foram crescendo, crescendo, crescendo! As estruturas das bocas romperam e as mandíbulas cederam, em um riso maquiavélico e repugnante. A ciranda necrótica girava em um ritmo obsceno. Os pés lazarentos pisavam sobre as maxilas e perdiam o equilíbrio. Os que iam ao chão eram arrastados pelos demais, sem que parassem de girar um momento sequer. Os globos oculares tornaram-se vermelhos, como os olhos da mulher que vira antes. Glay O’Hanne investiu contra círculo e foi ao chão com braços e antebraços decepados. Gritou até exaustão...
Mas os horrores não cessaram. Ao olhar em volta, deu-se conta de que estava cercado por milhares de mulheres como a que vira antes, também deitadas em sucatas. Elas o encaravam raivosamente como se intentassem fazê-lo sofrer tormentos ainda desconhecidos pelo ser humano. Abriram suas bocas e longas línguas escuras vibraram em uma terrível melodia. O rapaz tapou os ouvidos tombou de agonia. Cerrou as pálpebras, mas ainda assim podia ver os olhos vermelhos e as línguas morféticas serpenteando. À medida que cantavam, a natureza sofria e houve um grande tremor.
A terra sob seu corpo cedeu e ele despencou em queda livre na mais espessa e abissal treva. Presumia que no fim de tudo haveria grandes e fatais hastes que o empalariam, ou um lago cheio de criaturas famintas. Mas o que encontrou era pior! Era diabólico! Profano! Ele estava mergulhado em sangue, vísceras e toda secreção humana! Gritava desgraçadamente enquanto removia restos de couro cabeludo e pelos que lhe impediam a visão. Colunas vertebrais e intestinos balouçavam contra seu corpo. Tão enojado estava que não podia mover-se em busca de uma saída. O cheiro era indescritivelmente podre e a visão daquilo tudo, pior. Estava certo de que se conseguisse sair dali, morreria em seguida, vítima de uma doença fatal adquirida naquele antro de bactérias e imundície.
Entre gritos e soluços, avaliava o cenário claustrofóbico. Era uma arquitetura antiga, semelhante a catacumbas pagãs. Era formada por grandes blocos de pedras lodacentas e esverdeadas. Esculpidos nas rochas havia serpentes, leviatãs e hieróglifos danificados pelo tempo. Olhou para cima, mas não viu nenhum ponto luminoso, o que indicava que a superfície da qual despencara estava muito distante. Curiosamente, o local era completamente iluminado por uma fonte de luz desconhecida... Obviamente projetado para uma “boa apreciação da vista”. Aquele lugar deveria existir há muito. Quantos infelizes já estiveram lá? Aparentemente nenhum saíra vivo, pois no mundo em que vivera jamais ouvira histórias, ou uma lenda sequer sobre algo semelhante.
Alguns daqueles órgãos estavam podres, mas outros pareciam bem frescos. O pensamento de que seu corpo desmembrado seria o próximo entre tantos outros lhe encheu de desespero. Num ímpeto de coragem e instinto de sobrevivência, pôs-se a nadar, afastando os restos mortais com os braços abertos, avançando em busca de uma porta.
De súbito, uma efervescência começou a agitar o sangue e logo se tornou tão forte que as borbulhas estouravam e respingavam para todos os lados. Os membros fervilhavam e tremiam freneticamente, como se agonizassem depois de mortos. Um coro desesperado de gritos e lamúrias ecoou em todo o lugar, reconstituindo todas as atrocidades e torturas ali cometidas. Era terrivelmente pior que a cantoria das mulheres da superfície! Ele pôs-se a gritar! Seu suplício jamais teria fim!
Uma pavorosa lhama negra emergiu da podridão. Seus pelos estavam endurecidos pelo sangue, e ele julgou que o animal fosse o autor dos tormentos. Dos olhos vermelhos de sangue emanavam uma aura vermelha e cruel. Sua boca espumava ódio e saia vapor de suas narinas. Abraçada à lhama, uma mulher cabisbaixa e nua escondia suas formas na pelagem do bicho. Longos cabelos negros lhe encobriam a face, mas corpo completamente lacerado estava exposto. De suas costas pendiam restos mortais fundidos à pele, emanando um vapor fétido de enxofre. Quando ela revelou o rosto sério, foi o golpe fatal para O’Hanne.
Era ela! Seu único amor! A moça a quem amara por uma década de sua vida. A que habitava sua mente e subconsciente. A quem erguera palácios e reinos em seus sonhos. A única a qual entregaria seu coração se pudesse mudar seu passado. Aquela por quem colocara uma corda no pescoço.
Quando a situação no mundo ficou crítica, ela alegrou seus dias com sorrisos e danças. Ele a salvou da morte inúmeras vezes. Dormiam nas melhores camas e abrigavam-se em ruínas. Brincavam na chuva e sentavam-se ao fogo. Projetavam sombras e inventavam histórias antes de dormir... Aqueciam um ao outro em noites frias, até que um dia ela simplesmente não acordou. Agonizou febril por um dia inteiro, como que presa em um terrível pesadelo. Na hora morta deu o último suspiro. Morreu em seus braços sem causa ou despedida. No último momento ele não chorou, nem sacudiu o corpo inerte. Ergueu-se de imediato, amarrou uma corda numa árvore e depois em seu pescoço.
Ao recordar esses fatos, deu-se conta de que era a última memória que tinha até o presente dia. Forçou a mente e nada pôde lembrar. Ao olhar nos olhos da moça, entendeu por fim que também estava morto. Aquilo tudo era parte de seu inferno. Passaria a eternidade no vale da sombra da morte. Chorou amargamente e estendeu a mão para a amiga. Ela apegou-se mais forte à lhama e ignorou seu sofrimento. O'Hanne não sabia que a figura feminina era só uma ilusão destinada ao seu tormento... Aquela a quem amava estava sendo torturada em um inferno paralelo, mas bem próximo do seu.    


Nenhum comentário:

Postar um comentário

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...