sexta-feira, 2 de maio de 2014

A porta

Existe uma sala que eu nunca ouso entrar. Lá morreu um gato e eu o tenho por mártir. Quando passo em frente aquela porta quero morrer. Eu posso ouvi-lo miar e se debater contra as estruturas, fazendo o vidro canelado tremer. Asfixia, agonia, inanição. Quando isto acontece, morre uma parte de mim. É uma pena que não mais existam os cemitérios malditos, e todas as ruas sejam encruzilhadas.
Ele não tinha dono, mas também não tinha nome. Seus vocativos eram: “o gato cinza”, “o gato ladrão”, “o infeliz do gato”. Era um jovem pai de muitas crias e poucas posses. Mesmo assim, era bem possível que fosse feliz. Livre eu sei que era. E tinha no olhar o sagrado mistério dos gatos, diante do qual hei de me curvar enquanto viver.
Como puderam não tê-lo ouvido miar? A “humanidade” é assim... Tapa os ouvidos para o sofrimento, mas quando o cheiro podre da decomposição lhe chega às narinas, trata logo de identificar o problema e limpar. Remover a sujeira, o fedor. Os produtos estão aí para isso: desinfetar. E no fim, são poucos os que lembram que já houve um cadáver em determinado lugar.
Como o sangue há de clamar da terra, se o sódio, o potássio e os ácidos graxos cismam em apagar as escrituras sagradas e o crime de Caim? E eu nada mais sou que uma covarde, pois no fundo, evito aquela porta para evitar minha própria dor.

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