Mandei-lhe uma carta, e o convenci a respeito do que fazer com nossas vidas. Disse-lhe que, assim como ele, eu também não tinha por que existir. Vivíamos miseravelmente, e todo o ar que devolvíamos ao mundo era impuro, cheio de mágoa. Nosso sofrimento era açoite à fantasiosa onipotência humana, e todos (sem exceção), queriam nos consertar. Mas sempre fomos descartáveis, sempre soubemos disso: que nossa máquina não poderia ser reparada. Curiosamente, éramos aquele tipo de quinquilharia das quais as pessoas não querem desapegar. Rimos ao reconhecer isso.
Ele perdeu a mulher de sua vida, e eu perdi meus gatos. Ele padecia por ter conhecido o amor e dele ter sido privado. Eu sofria por não poder demonstrar afeto a qualquer outro que não fosse dotado de uma bela e felpuda cauda. Ele não poderia viver sem os sôfregos suspiros de sua senhora, e eu, sem o delicioso ronronar de meus felinos. Mas os cuidados de sua mãe o mantinham vivo. E eu, carola, temia o Divino e Seus desígnios. “Se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio...”
Propus então que ele viesse até mim, tirasse minha vida, e por fim, a sua. Eu pagaria por suas despesas e por sua companhia. Depois de mortos, não precisaríamos de economias, ou de honra. Não algemariam seu cadáver. Não o levariam para uma cela. Não o profanariam. Não... Não haveria inquérito. Haveria banquete e festim! Os vermes possuiriam nossos corpos, lambuzar-se-iam com nossas carnes, sorveriam cada gota da mais íntima secreção. Teríamos finalmente um caso de amor sob opulentos lençóis de terra! O maldito amor dos vermes! Por cada maldita célula de nossos corpos.
Trocamos inúmeras cartas e discutimos os mais excelentes métodos. Por fim, entre os mais poéticos e rudes, optamos por um simples e rápido: duas balas disparadas com maestria. Concordamos que aquilo tinha de ser um assassinato. Apesar de ínfima, era minha única chance de não ir para o inferno. Se houvesse qualquer oportunidade ou tempo para que eu buscasse ajuda, seria suicida em vez de vítima, e os braços de fogo do inferno me receberiam após o suspiro final. Ele, por sua vez, após me matar, teria de escolher entre a morte e a prisão, e a primeira alternativa seria a única que poderia considerar.
Após tudo acertado, ele veio. Não fez muitas cortesias, mas me beijou. Eu retribuí o beijo, e pedi para que me mostrasse a arma. Assim ele fez, e me senti excitada. Ele se afastou de mim e tirou suas roupas. Enquanto eu tirava as minhas, pensei em meu íntimo que um último momento de prazer não seria mau. Tive a impressão de ouvi-lo chamar pelo nome da outra, mas decidi ignorar.
Quando terminamos, nos cobrimos com o lençol. Nossa intimidade era de amigos e não de amantes. Ficamos calados, cientes do que estava por vir. Finalmente ele se sentou sobre a cama, e pegou a arma na cabeceira. Curvou-se e pôs-se a analisá-la entre os joelhos. Sua demora em dizer ou fazer qualquer coisa me incomodou.
- E agora? – perguntei, tentando rir.
Ele permaneceu em silêncio por algum momento, e por fim, tropeçou nas próprias palavras:
- Você acha que... Bem... Se eu apenas me ferisse... Se eu me machucasse gravemente... Você acha que ela viria por mim? Que me aceitaria de volta?
- Não sei! – minha voz de repente saiu mais alta e aguda que o normal. – Se ela realmente te ama, certamente viria por você. – tentei me recompor, mas não consegui parecer fria.
Ele continuou seu raciocínio. Minha frustração não o intimidou, e não temeu parecer fraco diante de mim. Ele não me amava, então não importava o juízo que eu fizesse.
- Se você quiser, eu ainda posso te matar. Apenas tenho que apagar as impressões, meu DNA. Quem sabe daqui uma semana?
Contrariada, pus minhas roupas, cuspi alguma ofensa e sai. Caminhei sem rumo por trechos conhecidos de asfalto. Não passávamos de hedonistas com aspirações mórbidas e ultra-românticas. Parei em uma esquina e acendi um cigarro. Suspirei, e uma mosca pousou em meu braço. Enojada de sua postura trêmula, tangi a criatura com a mão. Xinguei-a de amor, mas sabia que ela morreria no temporal que estava por vir.
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