sábado, 7 de novembro de 2015

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo IV

No dia seguinte Valentina acordou pouco antes do almoço, febril e com os pés em frangalhos. No entanto, estava feliz. Aquelas feridas atestavam que a noite anterior fora real. Pela primeira vez depois da morte de Klaus, sentiu-se disposta a sair da clausura de seu quarto, caminhar, respirar ar puro, sentir um pouco de sol.

Foi ao jardim e deixou-se invadir pela energia restauradora do astro rei, recuperando o rubor que a tristeza roubara de sua face. Entrou em casa quase que dançando, para admiração de todos. Sentou-se à mesa e serviu-se de tudo. Provou do ensopado, do pernil, e serviu-se de duas generosas fatias do bolo.

Os pais observavam atônitos, e a irmã caçula até cantarolou:
- “A Tina está namorandoo, seus olhos estão brilhandoo...”
Valentina afagou as tranças da pequenina, e respondeu com um sorriso.
- Quanta alegria, minha filha!
- De fato, meu pai!
- Já era tempo de você se reerguer. Que bom que atentou para meus conselhos, querida filha  – Gabou-se a mãe, julgando-se responsável por aquela melhora.

- A que se deve tamanho entusiasmo? – questionou o pai.
- Enquanto houver esperança, serei feliz! A quem mais os pássaros cantam, senão àqueles que aguardam ansiosos a sucessão dos dias? Os pássaros cantam por mim!
- Vejo que estás novamente apaixonada! Quem será o rapaz? – perguntou a mãe, respondendo logo em seguida – Presumo que Arthur Gundbrandsen!
- O dono de meus sentimentos sempre foi, e sempre será o mesmo. – respondeu com tamanha convicção, que todos os olhos e ouvidos presentes atentaram para tal declaração.
- Pois não entendo! – retrucou a mãe, buscando respostas no olhar dos demais.
- Minha filha... Seu noivo está irreversivelmente morto. – disse o pai, como um professor que explica algo complexo. Tentou manter a calma, pois pela primeira vez temeu pela sanidade de Valentina.
- Você não pode passar o resto de sua vida de luto! Esqueça-o de uma vez por todas! – disse a mãe, sem qualquer paciência para uma nova discussão.
- Pois ouça bem, minha mãe. Não esquecerei meu grande amor em um mês, e nem pretendo fazê-lo enquanto viver! – retirou-se após essas palavras, deixando a mãe nervosíssima.

Apesar de nada poder roubar sua felicidade, sentiu-se incompreendida. E como poderiam entendê-la? Se soubessem de suas experiências da noite passada, tomariam-na por louca, ou até mesmo praticante de bruxaria. Seria excomungada. Teve febre novamente, provavelmente causada pela friagem da madrugada anterior.
Acordou para o jantar, mas comeu em seu quarto. Não se sentia motivada a discutir novamente com sua mãe. “Como são insensíveis...”, pensou, enquanto tomava um copo de leite morno. Mas não se ateve a pensar em seus pais. Sua angústia era outra, que comprimia seu peito e embrulhava o estômago. Precisava ver Klaus novamente. Seria muito injusto se não o pudesse. Não suportaria perdê-lo por uma segunda vez. A mãe veio medir-lhe a temperatura e desejar boa noite. Mal podia imaginar que, por baixo das cobertas, Valentina estava completamente vestida para sair.

Quando se sentiu segura de que todos dormiam, a moça forjou em sei leito uma silhueta com almofadas, de modo que se alguém checasse seu quarto, pensaria que ela estava dormindo. Tomou o caminho secreto, e logo estava fora de casa.

Aquela noite estava demasiadamente fria e o vento, cortante. Ainda que com os pés feridos, seus passos eram determinados. Nenhuma dor ou medo a deteria rumo aquele encontro. Mantinha o pensamento em seu amado e deixava que as mais cálidas lembranças aquecessem seu corpo.

No entanto, seus delírios de amor foram cedendo a uma estranha sensação. Era como se algo maligno estivesse à sua espreita, montando uma espécie de cerco que se estreitava cada vez mais. A presença opressora se esgueirava por entre as árvores secas, varrendo a folhagem morta do chão. O vento rodopiava, formando redemoinhos de poeira e folhas. Ou seria neblina?! Por trás daquele sinistro fenômeno, teve a impressão de ter visto olhos ardentes, que chispavam aqui e ali, onde a treva era mais densa.

Fez o sinal da cruz e apressou o passo. Quanto antes estivesse ao lado de Klaus, mais segura estaria. Seu amado não deixaria que nenhum mal a acometesse. Aquela pavorosa neblina se dissipou quando chegou ao cemitério. Sentiu-se aliviada ao refugiar-se por trás dos portões.

O cemitério estava completamente escuro, iluminado apenas pelas estrelas. Por sorte já conhecia bem o caminho para o túmulo de Klaus. Mas para seu desespero, não avistava em lugar nenhum a silhueta fluorescente de seu Fantasma.

Aflita, começou a chamar pelo nome do amado e rogar aos céus que não lhe negassem aquela graça.

Quando estava prestes a chorar, surpreendeu-se um com ruidoso estilhaçar. Virou-se rapidamente, com a mão sobre o peito. Lá estava Klaus, e à sua frente um arranjo que ele arremessara contra o chão.
- Valentina! Podes me ver?!
- Sim, meu amor, sim! – disse, e lançou-se nos braços do Fantasma. Mas acabou atravessando o corpo imaterial.
- Estou tentando atrair sua atenção desde que chegou ao cemitério. Foi mais fácil que da outra vez. Acho que estou aperfeiçoando minha técnica de comunicação com os vivos! – disse, satisfeito.
- Não pode imaginar a felicidade que isto me traz! Mas em breve não precisará mais de tantos esforços. – disse Valentina, perdida em incógnito vislumbre.

 - Por que diz isso? – perguntou, intrigado com aquela expressão no rosto da moça. Conduziu Valentina a um conjunto de grossas raízes que serviam perfeitamente de assento. Não podia toca-la, mas sua energia a envolvia de forma quase palpável. Ele sentou ao lado da moça e pôs as mãos sobre as dela.
- Certa vez ouvi dizer que os espíritos podem tocar uns aos outros. É verdade? – retomou aquele ar esfíngico.
- Sim. – fez uma pausa, desconfiado acerca do que viria adiante. – É verdade. Mas porque pergunta?
- Porque pretendo me tornar um fantasma, assim como você.
- Valentina, você...
- Sim. Morrerei. E assim finalmente me unirei a ti, como sempre sonhamos.
- Você não sabe o que está falando. Você tem muitos anos pela frente! É jovem, ainda pode ser feliz! – a figura de Klaus brilhou ainda mais,como uma estrela prestes a morrer.
- Mas minha felicidade está contigo! Sem ti, não poderei suportar sequer um ano. A morte é inevitável para mim. Ainda que eu viva um século, envelhecerei. E quando morrer, serei um fantasma decrépito, que assustará até a ti.
Klaus não riu daquelas palavras, apesar de terem um tanto de graça. Era tudo verdade. Valentina envelheceria, mas isso ele poderia suportar.  Mas era bem provável que fosse obrigada a se casar com outro homem, e sujeitar-se aos caprichos deste. A sociedade não era justa para as mulheres. Era normal que os maridos subjugassem as esposas. Além disso, homem algum amaria Valentina como ele. Mas era por amá-la tanto que jamais aceitaria seu sacrifício em nome daquele sentimento. Tratou logo de mudar de assunto. Não daria asas a tais pensamentos.

- Você fica mais bela a cada dia! Pergunto-me como isto é possível. Estou certo de que na terra não existe donzela alguma de semelhante beleza.

De fato, Valentina estava deslumbrante. Sedutora à sua maneira tímida. Trajava o belíssimo vestido creme que reservara para as núpcias. O decote quadrado valorizava o busto adornado por um camafeu dourado. A rica joia se perdia por entre os seios de nívea brancura. O corte justo realçava o ventre esguio, o volume dos quadris. Lamentava ter se mantido casta em nome das convenções religiosas e sociais, que de nada lhe serviam agora que seu amado estava morto. Naquele amor não haveria pecado. Tudo seria sacramento.

- Vesti-me especialmente para ti. Estou pronta para ser tua, Klaus.
- Mas como poderei, Valentina...?! – Klaus estremeceu.

Em silêncio, a moça começou a se despir lentamente de suas vestes e pudores. Desprendeu os feixes do vestido, revelando um ombro e depois o outro. Embora todo seu corpo tremesse de frio e sofreguidão, mantinha o olhar no amado. Klaus permanecia petrificado, como que sob o encanto de uma deusa mitológica. A aura do Fantasma tornou-se vermelha como o fogo e inflamava à medida que Valentina prosseguia com o lânguido rito. Ela se virou e deixou o vestido cair até a cintura, revelando a sedutora musculatura das costas e as estonteantes covinhas de Vênus. Quando Valentina virou-se de frente e exibiu o voluptuoso e perfeito par de seios, o Fantasma chegou ao ápice do desejo. Klaus tornou-se uma figura fulgurosa e incandescente que ameaçava consumir-se a qualquer momento, tamanha era a excitação que o acometia.

No entanto, em um lampejo de lucidez, o Fantasma recobrou o controle de si.
- Por favor, Valentina. Pare. Vista-se! Não podemos continuar com isso. Não é correto, nem possível! – soluçou Klaus, envergonhado de si, de sua incapacidade, de sua fraqueza.
- Não lute contra isso, meu amor! Sei que me desejas tanto quanto eu a ti! Por favor, Klaus, não adiemos mais esse momento, pois essa espera me adoece! Não vês que estou enferma de amor?!
- E tu não vês que estou morto? Que não posso sequer te tocar. Como poderia eu... Como poderia, Valentina?! – exclamou, desesperado.
- Não me importa que estejas morto e incorpóreo. O simples contato com tua energia pode me levar ao mais sublime gozo! Vem, meu amor! Invade meu corpo com tua cálida aura. Deposita em mim teu calor e vida, pois também morri naquele fatídico dia!  
- Não posso, Valentina! Não seria justo para contigo. Vista-se. Tem outros espíritos a espreita. Não quero que comprometa tua virtude.
- Pois a mim não importa. Não os vejo! Se for o caso, vamos ao teu túmulo!
- Pare! Não diga mais nada, pois não estás agindo com lucidez. O desejo quase me cegou, mas não deixarei que roube sua visão.
- Klaus... – Valentina emudeceu. Vestiu-se e nada pôde falar tamanha era sua frustração.
- Tu sabes o quanto te desejo. Essa tortura é ainda maior para mim do que para ti.

A moça deixou o cemitério aos prantos.
Decidiu de uma vez por todas: Naquela noite, morreria. 

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Valentina seguiu errante pela noite, profundamente abalada.

Seja pela vontade dos deuses, ou por uma inexplicável sorte, não sofreu nenhum dano, não foi roubada, ou abordada por qualquer malfeitor. Nem sequer recebeu um galanteio mais afoito dos bêbados que vagavam pelas ruas à noite. Na verdade, aquela cidade nunca fora tão silenciosa quanto aqueles tempos. Uma série de assassínios estava mantendo os nobres em suas casas ou em quartos de bordéis. E os mendigos pareciam ter sumido das calçadas onde costumeiramente dormiam.  

“Fantástico...” Praguejava Valentina, enquanto marchava lentamente para morte (ou para casa, o que viesse primeiro). “O terrível estripador não passa de uma fábula...”. Sentou-se no parapeito da ponte e continuou a refletir. “Tal rumor é deveras conveniente. As mulheres mantêm seus maridos em casa, e os jornais vendem mais exemplares. Afinal, todos se interessam por assassinos em série. Grande lorota.”

Lembrou-se, porém daquela experiência pavorosa que a fez fugir.  Deu-se conta que ainda guardava consigo um tanto daquela sensação, e perdeu o fôlego.  Olhou em volta e novamente se sentiu observada. Era como se a presença estivesse lá, sempre à espreita. De certo estava lá! Levantou-se do parapeito, temendo que uma mão terrível a puxasse para o rio. Sentia que não poderia dar as costas para nenhuma direção, pois aquele mal a vigiava por todos os lados. Pôs-se a caminhar apressadamente, girando a cada cinco passos. Aquela presença opressora a fez por um momento esquecer a futura “vida” ao lado de seu amado fantasma. Quem resiste ao terror da Morte? Que espírito sobremaneira elevado encararia sua algoz sem trincar os dentes? A Morte era terrível para todos. Ainda que trouxesse o alívio final para alguns, o encontro com a sinistra dama afetaria o mais forte ser vivente.

O instinto natural a fez correr, mas as vestes volumosas não lhe permitiram ir longe. Em menos de dez metros percorridos, Valentina foi ao chão. Ergueu-se um pouco com auxílio das mãos e virou o tronco para encarar os olhos cruéis de sua verdugo. 

Para a sua surpresa, não era a Morte e sim um elegante cavalheiro em trajes de gala. Ele tinha cabelos loiros caindo nos ombros e um rosto tão sombrio quanto deveria ter aquela a quem esperava.
- Pensava que eras mulher – balbuciou a moça.
- Por quem me tomas?! – respondeu, com certa frustração.
- Perdoe-me, senhor. É que eu esperava a Morte.
- Receio que não nos pareçamos.
- Estou certa que não – respondeu Valentina, enquanto apalpava as têmporas, toda confusa.

Ele lhe estendeu a mão, com um riso no canto da boca. Seus dentes reluziram de forma sinistra à meia luz. Apesar da impressão taciturna, era belo. Teria notado o charme do cavalheiro, não estivesse perdida de amor pelo Fantasma.

- Acho que não encontrarei quem procuro esta noite.

Ele riu.

- Quem sabe amanhã? – respondeu com certo humor negro, que causou arrepios na moça.

- É. Quem sabe.

Valentina limpou a terra das vestes e seguiu para casa apressadamente.
De alguma forma, sabia que não estava sozinha.

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...