A grama do jardim continua a
crescer num ritmo invariavelmente rápido. As ervas daninhas insistem em brotar
dos mais inóspitos orifícios. Enroscam-se, invadem. Como arabescos sem fim... A
folhagem seca se precipita para dar lugar à nova fronde. A mim, resta observar
da janela a desordem instaurada em meu quintal. Não posso interferir em tal
ciclo. Que faria eu? Decretaria o fim da revolução natural? Deceparia os braços
das árvores por tamanha anarquia? Asfixiaria a pobre grama sob duas ou mais
camadas de concreto? Longe de mim! Seria mais fácil lidar com o pulsar de um
coração delator escondido no assoalho que manter a Natureza refém em minhas
terras. “Minhas terras”...
Debruço-me na janela, e inicio a
minha mais corriqueira reflexão sobre a retrospectiva do ser humano na Terra. Sobre
como viemos a existir ocasionalmente, e desde este fatídico momento, procriamos
sem cessar. Nossa prole tornou-se incontável como as estrelas do céu... Como a
areia do mar... Dominamos o fogo e criamos diversos outros instrumentos para subjugar
o mundo. Como verdadeiros parasitas, seguimos esgotando todos os recursos ao
nosso alcance. Delimitamos espaços com muros e fronteiras invisíveis. Propriedades,
cidades, estados, países... Ferimos a selva e criamos estradas, como cupins e
outras pragas fazem nas árvores até que apodreçam por completo. Povoamos a terra
como um câncer se instala num organismo vivo. Nossas civilizações continuam se
expandindo como uma metástase agressiva e fatal. A Terra vai ficando mais
doente a cada dia, e às vezes eu choro por isso. Culpo a mim e meus
semelhantes, embora saiba que muitos parasitas não tenham ciência de sua
verdadeira condição.
Grito em silêncio, pois é crime
incomodar os vizinhos. Agonizo, sem saber o que fazer ou a quem recorrer.
Estamos todos no mesmo barco. Meus pais me domesticaram bem cedo, quando eu
ainda era um filhotinho vulnerável e dependente. Ensinaram-me dezenas de regras
de comportamento e assepsia. Proibiram-me de subir em árvores e fazer muitas
coisas que os outros animais fazem. Disseram-me que eu era onívora, e que isso
era natural do ser humano. Além disso, eu teria de lavar as mãos antes de
comer. Perguntavam-me a todo tempo o que eu queria ser quando crescesse.
Aparentemente eu não seria nada, até desempenhar uma função social. Então me matricularam
em uma escola para auxiliar em meu processo de adestramento. Lá aprendi de tudo
um pouco para que, ao longo de 18 anos eu descobrisse como poderia servir
melhor a sociedade. No processo, ensinaram-me diversas operações aritméticas
que ainda não tive oportunidade de usar. Decorei a fórmula de Bhaskara, o valor
do Pi e uma infinidade de conceitos que, segundo os professores, eram de
extrema importância. Infelizmente, não me ensinaram a criar um abrigo para me
proteger do sol e da chuva. Não me deram qualquer instrução sobre como
sobreviver na ausência dos recursos e artefatos humanos. Suspeito que haja uma
grande conspiração da qual não posso me desvencilhar. Grito em silêncio. E
simplesmente continuo a existir.
Desconfio que tudo que parece
necessário, não passa de engodo e simulacro de satisfação. A mídia nos enfia
goela abaixo que não basta sobreviver neste mundo. Ora! Além de ter nossas
necessidades genuínas atendidas, é preciso ter uma sensação perene de bem estar
e aconchego. Para suprir tal demanda, existe o complexo mercado e seus mil
nichos para assistir cada particularidade humana. Por mais fútil que seja. Porque não basta comer uma galinha ou um boi.
É também preciso comer ovas do mais exótico peixe, que nada nas mais profundas
águas do fim do mundo. Não basta que tenhamos unhas eficientes. Elas precisam
ter cores diferentes pelo menos duas vezes ao mês. Porque simplesmente não
basta termos corpos sadios. É preciso que eles tenham medidas que foram padronizadas
por um desconhecido. É proibido ter cutículas, celulites, seios flácidos,
estrias, cabelos brancos, joanetes, marcas de expressão, pelos no nariz e
outras mil coisas que são naturais do ser humano. Temos que lutar pelo que não
temos e contra o que temos. Tornamos-nos escravos miseráveis de tendências que
só existem porque as aceitamos. E é patético como nos esforçamos para nos tornarmos
engrenagens perfeitas de um sistema decadente, que mal se sustenta. É
desesperador de tal forma que até as religiões falharam em tentar
combater essas inquietações. O que resta é um profundo mal estar no interior de
cada ser humano.
O homem conceituou como caos tudo
aquilo que, em sua limitada percepção, encontra-se fora de ordem ou alheio ao
seu controle. Mas desde o princípio o caos é mais irrefutável lei natural que
rege o universo. Todos estamos sujeitos a essa lei. Mas preferimos resistir,
ansiosos e infelizes. Maquiando o mundo, delimitando espaços, cortando a grama
do jardim, aparando os pelos do corpo e aniquilando os insetos que invadem
nossos castelos de ilusão.