terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Patético circo humano

A grama do jardim continua a crescer num ritmo invariavelmente rápido. As ervas daninhas insistem em brotar dos mais inóspitos orifícios. Enroscam-se, invadem. Como arabescos sem fim... A folhagem seca se precipita para dar lugar à nova fronde. A mim, resta observar da janela a desordem instaurada em meu quintal. Não posso interferir em tal ciclo. Que faria eu? Decretaria o fim da revolução natural? Deceparia os braços das árvores por tamanha anarquia? Asfixiaria a pobre grama sob duas ou mais camadas de concreto? Longe de mim! Seria mais fácil lidar com o pulsar de um coração delator escondido no assoalho que manter a Natureza refém em minhas terras. “Minhas terras”...

Debruço-me na janela, e inicio a minha mais corriqueira reflexão sobre a retrospectiva do ser humano na Terra. Sobre como viemos a existir ocasionalmente, e desde este fatídico momento, procriamos sem cessar. Nossa prole tornou-se incontável como as estrelas do céu... Como a areia do mar... Dominamos o fogo e criamos diversos outros instrumentos para subjugar o mundo. Como verdadeiros parasitas, seguimos esgotando todos os recursos ao nosso alcance. Delimitamos espaços com muros e fronteiras invisíveis. Propriedades, cidades, estados, países... Ferimos a selva e criamos estradas, como cupins e outras pragas fazem nas árvores até que apodreçam por completo. Povoamos a terra como um câncer se instala num organismo vivo. Nossas civilizações continuam se expandindo como uma metástase agressiva e fatal. A Terra vai ficando mais doente a cada dia, e às vezes eu choro por isso. Culpo a mim e meus semelhantes, embora saiba que muitos parasitas não tenham ciência de sua verdadeira condição.

Grito em silêncio, pois é crime incomodar os vizinhos. Agonizo, sem saber o que fazer ou a quem recorrer. Estamos todos no mesmo barco. Meus pais me domesticaram bem cedo, quando eu ainda era um filhotinho vulnerável e dependente. Ensinaram-me dezenas de regras de comportamento e assepsia. Proibiram-me de subir em árvores e fazer muitas coisas que os outros animais fazem. Disseram-me que eu era onívora, e que isso era natural do ser humano. Além disso, eu teria de lavar as mãos antes de comer. Perguntavam-me a todo tempo o que eu queria ser quando crescesse. Aparentemente eu não seria nada, até desempenhar uma função social. Então me matricularam em uma escola para auxiliar em meu processo de adestramento. Lá aprendi de tudo um pouco para que, ao longo de 18 anos eu descobrisse como poderia servir melhor a sociedade. No processo, ensinaram-me diversas operações aritméticas que ainda não tive oportunidade de usar. Decorei a fórmula de Bhaskara, o valor do Pi e uma infinidade de conceitos que, segundo os professores, eram de extrema importância. Infelizmente, não me ensinaram a criar um abrigo para me proteger do sol e da chuva. Não me deram qualquer instrução sobre como sobreviver na ausência dos recursos e artefatos humanos. Suspeito que haja uma grande conspiração da qual não posso me desvencilhar. Grito em silêncio. E simplesmente continuo a existir.

Desconfio que tudo que parece necessário, não passa de engodo e simulacro de satisfação. A mídia nos enfia goela abaixo que não basta sobreviver neste mundo. Ora! Além de ter nossas necessidades genuínas atendidas, é preciso ter uma sensação perene de bem estar e aconchego. Para suprir tal demanda, existe o complexo mercado e seus mil nichos para assistir cada particularidade humana. Por mais fútil que seja.  Porque não basta comer uma galinha ou um boi. É também preciso comer ovas do mais exótico peixe, que nada nas mais profundas águas do fim do mundo. Não basta que tenhamos unhas eficientes. Elas precisam ter cores diferentes pelo menos duas vezes ao mês. Porque simplesmente não basta termos corpos sadios. É preciso que eles tenham medidas que foram padronizadas por um desconhecido. É proibido ter cutículas, celulites, seios flácidos, estrias, cabelos brancos, joanetes, marcas de expressão, pelos no nariz e outras mil coisas que são naturais do ser humano. Temos que lutar pelo que não temos e contra o que temos. Tornamos-nos escravos miseráveis de tendências que só existem porque as aceitamos. E é patético como nos esforçamos para nos tornarmos engrenagens perfeitas de um sistema decadente, que mal se sustenta. É desesperador de tal forma que até as religiões falharam em tentar combater essas inquietações. O que resta é um profundo mal estar no interior de cada ser humano.

O homem conceituou como caos tudo aquilo que, em sua limitada percepção, encontra-se fora de ordem ou alheio ao seu controle. Mas desde o princípio o caos é mais irrefutável lei natural que rege o universo. Todos estamos sujeitos a essa lei. Mas preferimos resistir, ansiosos e infelizes. Maquiando o mundo, delimitando espaços, cortando a grama do jardim, aparando os pelos do corpo e aniquilando os insetos que invadem nossos castelos de ilusão. 

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...