segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capíluto VII

De súbito, Valentina sentiu-se engasgar, como se uma enguia tentasse descer garganta abaixo.  Estava prestes a tocar no manto da Morte, quando a Terrível Dama a empurrou para longe e deu um terrível grito!

- Malditaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! – urrou a Ceifadora, revelando sob o manto negro sua pavorosa face de caveira.

Valentina sentiu cada silaba daquele esconjuro penetrar em seu corpo e destruir seu espírito. Naquele momento, soube que a essência mais preciosa a abandonara, deixando seu interior desolado, vazio, escuro, frio. Seu corpo, antes templo de todas as virtudes, tornou-se santuário em ruínas, de portas escancaradas para o profano. A Morte se retirou em uma marcha decrépita, lançando mil sortilégios ritmados pelo ranger sinistro de ossos. Valentina sentiu-se em grande pecado... o mais desprezível de todos os seres. Quis clamar pelo divino nome, mas ao fazê-lo sentiu a boca encher-se de sangue e a visão de todos os mártires passou diante de si. Eles a encaravam com olhos inquisidores, enquanto espumavam de dor.  A moça lamentava, chorava e puxava os próprios cabelos.

- Perdoem-me! Perdoem-me! Fiz tudo por amor! Perdoem-me! - Gritava a plenos pulmões, olhando para o firmamento flamejante, que deveria ser o céu.

Quanto mais clamava, mais horrendas as visões se tornavam. No meio de tamanha angústia e sofrimento, Valentina notou a presença de um homem assustado que parecia fugir do mundo inteiro. Ele escondia o rosto sofrido na orla de suas vestes maltrapilhas; A moça segurou-lhe o braço antes que fugisse de sua presença.

- Por favor, me ajude! Não vá embora, senhor! Não me deixe aqui sem de nada saber! É este o inferno, ou será um lugar pior?!
- Inferno?! Também procuro o caminho para lá! Avise-me se encontrar! - retrucou o homem, esquivando-se nas trevas.
- Por favor, não se vá! Ajude-me! - Valentina colocou-se na frente o homem atordoado, impedindo que seguisse seu caminho.

Ao encará-la melhor, os olhos dele se acenderam.

- Vejo que também és maldita! Tu tens o sinal...Tu também tens o sinal! – Ele a analisava num misto de esperança e loucura, enquanto tamborilava com os dedos na própria testa. – Tu és maldita, assim como eu!

Valentina procurou em seu próprio corpo pelo sinal de que o homem falara, e nada compreendeu.

- Não compreendo! Qual a sua graça, senhor?!
- Filho Mau... Vagabundo... Maldito... Odiado dos Homens... Fratricida... Filho desviado de Deus... Maldito... Caim... Me chamo Caim... Aquele que vaga nas sombras... Maldito – o homem cuspia injúrias contra si, sem que pudesse controlar a língua ou os tiques.

Valentina foi ao chão ao reconhecer a abominável identidade daquele homem. Aquele "personagem" assombrara seu imaginário infantil desde que a introduziram nos preceitos da crença. E lá estava ela, no mesmo lado da balança em que o primeiro monstro da humanidade.

- Se pequei foi por amor! Deus terá misericórdia de mim! Não tirei vida alguma, além da minha! – gritou Valentina aos prantos, na expectativa de que aquele homem fosse embora e de alguma forma levasse sua iniqüidade – Eu não matei ninguém!
- Ainda não derramaste sangue, mas logo verás que nem o sangue do mundo inteiro saciará sua fome! Maldita! Tu também és maldita!

De repente, Valentina se viu a golpear o homem, e quanto mais o feria, mais ele a amaldiçoava. Ela o esmurrava na face com os punhos fechados, e cortes se abriam em todos os lugares. Tanto lhe bateu, que o rosto virou uma massa inchada e irreconhecível. O sangue jorrava abundante pelos cortes, inundando-lhe os olhos e a boca. O homem apenas ria, enquanto o líquido vermelho espumava em sua boca, tingindo seus dentes podres de vivo escarlate.

Num lampejo de lucidez, Valentina soube que perderia o controle de si. No instante seguinte, já não podia conter sua raiva e aquela força descomunal que adquirira. Não podia mais suportar aquela fome insana que crescia em cada célula de seu corpo. A vermelhidão do sangue a convidava como o mais nobre e excelente vinho. A carne ferida a atraia como o mais suculento manjar. Sem ao menos hesitar, devorou a face inteira do homem, que “morreu” sorrindo.

Ao sentir-se saciada, vislumbrou o cenário visceral ao seu redor. Pedaços de carne humana, couro cabeludo, dentes e ossos menores espalhados por toda parte, inclusive sobre si. Tocou o próprio rosto e sentiu que adquirira as feições de uma besta demoníaca. Os caninos pontiagudos rompiam-lhe a gengiva causando imensa dor. Olhou para as próprias mãos e vestes, cobertas com o sangue de sua iniquidade. Olhou para dentro de si, e soube que jamais seria a mesma novamente. O mundo girou, a vista se anuviou e ela desfaleceu.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Glória moribunda

(...)
" Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?"
(...)

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo VI

Valentina despertou na floresta com a impressão de ouvir asas batendo aos seus ouvidos. Estava certa de que era um morcego, pois podia ouvir o seu trissar estridente.  Espantou a criatura com as mãos e levantou-se assustada. Seu vestido estava imundo e os longos cabelos repletos de folhas secas. Não sabia por quanto tempo ou dias estivera na mata. Estava completamente confusa, mas constatou que o sol se poria em breve a julgar pelas nuances de luz que cortavam a folhagem. Pouco a pouco começou a recordar as revelações que Arthur fizera, e seu rosto foi se contorcendo até explodir em copioso pranto.  Estava certa de que aquela dor dilaceraria seu peito e todo seu corpo. Era tão intensa que podia senti-la fisicamente... Uma dor que a fez gritar até sentir que os pulmões explodiriam e as cordas vocais rasgariam. Um pranto tão doído que tossia e engasgava como que vítima do mais nocivo veneno: o rancor, que se espalhava veloz por cada uma de suas veias. Naquele momento, as preciosas virtudes abandonaram o casto coração de Valentina, assim como o sol, que se retirou e deu lugar a uma treva profunda... E tão escuro ficou que nada mais podia ver.

Cega de ódio e destruída por dentro, seguiu pela mata guiada por uma intuição obscura e desconhecida. Como que por encanto, o véu negro da escuridão se abriu e ela se viu novamente no vilarejo. Tudo estava envolto daquela estranha neblina que vinha se manifestando nos últimos tempos e mal podia enxergar um metro à sua frente.  Valentina seguiu errante pelo cenário pálido e fantasmagórico, até perceber que estava na ponte. O vento soprava gélido, balançando as candeias de um lado para outro.  A chama das lamparinas tremulava num tom sobrenatural de azul, como pequenas fadas em combustão a agonizar. O crepitar sinistro era como gemidos de dor, que se propagavam no vento em funesta sinfonia. Pouco a frente, foi se formando a silhueta sombria de um cavalheiro, que se tornava cada vez mais familiar. Ele se virou, e seus dentes salientes pareceram brilhar quando sorriu. Ela conhecia bem aquele riso torto e maquiavélico. Era Nikolai, que (como sempre) parecia esperá-la.

Ele abriu os braços e, por algum motivo inexplicável, Valentina sentiu-se impelida a abrigar-se em seus braços. Nikolai tomou-a por inteiro dentro de sua capa. Seu peito era rígido como mármore e frio como uma sepultura. Ela não sentiu conforto algum, mas sim o pavor inerte de um animal indefeso nas garras de uma fera predadora. No entanto, contrariando todos os seus instintos, ela apegou-se ainda mais àquela sensação, mergulhando profundamente naquele abraço.

-Se realmente me amas, mate-me, por favor! Eu não posso viver neste mundo nefasto sabendo o que sei! – disse entre lágrimas e soluços.
- Então queres mesmo morrer?! – Nikolai perguntou quase sorrindo, enquanto afagava os cabelos de Valentina.
- Com toda minha alma, sim! É o que desejo. Prometo rogar aos céus que não lhe imputem minha morte por crime!
- Querida, não te perturbes com este compromisso. Estas tolices de céu ou inferno há muito não turvam meu espírito e nem regram meus atos. Não te ofendas, mas sequer penso em tais coisas. Todavia, sou-te grato, pois bom é o teu intento.
- Se fôlego tivesse para viver mais um dia, juro que me empenharia em tua salvação. Chamar-te-ia amigo, e destituiria teus pensamentos de tais heresias.
- A única salvação que preciso é do inferno de não ter você... Em vez de palavras santas, converta teu precioso fôlego em beijos e eu me converterei a ti com crença jamais vista.
- Por favor, não me galanteie. Não pague minhas puras palavras com estas outras cheias de pecado travestido de amor.  
- Oras! Julgava-me livre, mas vejo que já me converti. Tu mandas, e eu servilmente calo.
- Então, meu amigo e servo, mate-me. De algum lugar tua santa irá interceder por tua alma. Peço-te apenas que conserves minha beleza... E que sejas rápido.
- Depois de morta, estarás mais bela que nunca. Mas confesso que não posso imaginar maior beleza que esta que meus olhos vêem.
- Usarás arma de fogo ou coisa assim?
- Admiro tua bravura, mas será mais fácil se não souber. Feche os olhos, sim?

Valentina olhou em volta, em breve despedida. Soube que sofreria por suas irmãs, em especial a caçula. Por seu adorado gato Leopoldus também. Mas não poderia continuar entre os poucos que amava e ao mesmo tempo viver sob o teto dos inimigos de sua alma.

Obedeceu a instrução do cavalheiro e deixou-se guiar às cegas até o parapeito da ponte. Estremeceu de frio e medo, mas desta vez não seria covarde. Abraçaria a Morte, qualquer que fosse sua aparência... E estando de olhos fechados, era como se o Nikolai fosse a própria Morte...

O vento pareceu adquirir consistência, deslizando em espirais por seu pescoço, braços, tornozelos, invadindo suas vestes. Uma atmosfera hostil a envolveu por inteiro, e ela se sentia como um animal acuado, que pressente desgraças antes que aconteçam. Era como se Nikolai a estivesse rodeando, como um lobo em volta da presa.  E com ele, uma matilha inteira formada de ar. A sensação era de que a ameaça vinha de todos os lados e ela não ousou abrir os olhos. Não conseguia. Estava petrificada e seu corpo não obedecia aos instintos de sobrevivência.
Valentina sentiu o corpo inteiro de Nikolai contra suas costas. Cada músculo, cada membro, cada contorno, numa proximidade exagerada e íntima. As mãos lascivas envolveram sua cintura e prenderam-na com volúpia.  Ele pôs a palma sobre sua têmpora, e sem encontrar qualquer resistência, moveu-lhe o rosto, deixando o pescoço da moça completamente exposto. De olhos fechados, ela sentiu o toque do nariz grego sobre sua pele a absorver o seu cheiro, os lábios frios a beijar e depois lamber sua garganta. Sentiu-se ultrajada, vulnerável, impotente. Mas ao mesmo tempo, como que possuída por um encantamento imundo, desejou que aquilo se tornasse mais intenso, que ele enterrasse o rosto de vez em seu pescoço, em seus cabelos e que lhe arrancasse a carne.  E assim o fez. Ele a mordera! Aquele homem perverso e libertino cravara os dentes em seu pescoço com a violência de uma fera. Após certa resistência, a pele rompeu-se sob os caninos pontiagudos e mortais de Nikolai. O sangue abandonava seu corpo em jatos na intensidade imposta por aquela boca vil, que sugava ininterruptamente. Era como se seu corpo não mais existisse, e seus membros fossem completamente feitos de dor.  O único som que conseguia emitir era um abafado arranhar de cordas vocais, e foi emudecendo na medida em que enfraquecia. Aos poucos a dor cedia, e sentia-se leve como uma pluma. Seu corpo estava arqueado de uma forma que causaria desconforto a qualquer um que estivesse lúcido. No entanto, ela sequer sabia em que posição estava e perdera completamente o senso de direção. Todavia, sabia que as mãos de Nikolai ainda a apoiavam. O local onde ele a mordera estava úmido, e presumiu que fosse de saliva ou sangue. Sentia o estalar dos lábios dele em seu pescoço. Ele agora a beijava, como se não fosse mais a fera de tempos antes.

Seus últimos pensamentos foram de arrependimento, por permitir que aqueles lábios estranhos a tocassem. Sentiu como se chorasse, e um terrível frio a invadiu. Por fim, seu corpo se debateu. Eram os espasmos da Morte. Ela estendia as mãos esqueléticas em sua direção, e embora não pudesse ver seu rosto descarnado, sentiu-se amparada pela senhora sombria.  Valentina abraçou a Morte e sentiu um inesperado conforto ao ser envolvida por seu manto. 

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...