sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo III

Os dias passavam e Valentina sabia que aquela crescente dor jamais se tornaria mera saudade. As pálpebras inchadas e sempre úmidas falhavam em represar o manancial infindo de lágrimas. Definhava dia após dia. Sua postura etérea agora parecia o flutuar de um espectro. Ao cruzar com a irmã caçula no corredor, causou na criança grande espanto.

Era bom que parecesse feia. O filho de Gundbrandsen não casaria com uma moça de aspecto doentio, assim como nenhum outro rapaz do reino a proporia. Mas estava enganada ao pensar que tais sutilezas prevaleceriam sobre os interesses por trás daquele matrimônio alcovitado. O vento malvado tratou de levar aos ouvidos da moça os silvos das más línguas, que já especulavam a respeito de seu casório com Arthur, o filho do conde.

As contas do terço bateram estridentes contra a parede. Cansara de todos, da sociedade, das rezas, da vida. Entregar-se-ia a morte, definharia dia após dia. Deixou de comparecer às refeições e sequer levantava da cama. Mergulhou em profunda melancolia. A noite era o único momento em que tinha pequenos sopros de alegria. Edificou um templo para Klaus em seu subconsciente, e em sonhos revivia os dias felizes que tiveram.

Certa noite, porém, não conseguiu dormir. Sempre que os olhos pesavam, despertava noutro instante com a impressão de ouvir chamarem seu nome. Relutou por algum tempo, até ouvir nitidamente, como se falassem ao seu ouvido. Arrepiou do alto da cabeça aos pés.

Levantou num ímpeto, e foi até a varanda de seus aposentos. O vento uivava impetuosamente e trazia junto à sua estrondosa onomatopeia a inconfundível voz de Klaus. Trêmula, cobriu-se com o robe de cetim e tomou a passagem secreta que outrora utilizava para encontrar-se às escondidas com o falecido noivo.  Num piscar de olhos estava do lado de fora da mansão. Iria ao cemitério, pois de algum lugar dalém dos fúnebres portões, seu amado a chamava.

Estava frio lá fora, e as ruas desertas. O vento desgrenhava-lhe os cabelos, e investia contra sua frágil vestimenta, obrigando-lhe a reforçar a segurança com as mãos. Pouco importava se alguém a visse e o juízo que fariam de seu estado mental. Todos naquela cidade sabiam de seu infortúnio, e não lhe julgariam leviana pelas vestes inapropriadas. No máximo a tomariam por louca. De qualquer forma, cobriu o rosto com os cabelos. Se o relato de sua imprudência chegasse aos ouvidos de seus pais, eles tomariam medidas drásticas.

Sem parar um instante sequer para recuperar o fôlego ou descansar os pés descalços, atravessou o pequeno vilarejo: a praça vazia, a clínica do médico, o casa da parteira. Pegou um desvio para não passar em frente ao bordel. Passou pela igreja, e todos os santos pareciam fitá-la com seus olhos piedosos.

O chão tornou-se lamacento, e seus pés castigados, sentiram certo alívio ao entrar em contato com a terra úmida. Ignorou a própria dor e continuou seu caminho, pisando cipós e espinhos. Finalmente chegou diante dos ornamentados portões do cemitério, e com grande esforço conseguiu movê-los. A voz que clamara durante todo o percurso, calou-se assim que cruzou o pórtico. Aquele silêncio tumular era de gelar os ossos.

- Por favor, fale! Seja lá o que queres de mim, diga agora! – disse com voz decidida, porém suave.
Para sua frustração, o silêncio.
- És tu, meu amor? Por que foges de minha presença? Mostra-te, anjo de luz! Tua alma iluminada jamais me infligirá medo. Não temas por mim! Aparece!
Não obteve resposta alguma.
- Klaus? Imploro-te que apareça!
Nada aconteceu e a moça rompeu em lágrimas. O desalento invadiu seu corpo, trepido de dor.
- Oh, gênio das trevas lúgubres! Porque me encheste de falsas esperanças? Não está meu espírito quebrado o suficiente? Mostra tua face pavorosa e faz com que a máquina de meu corpo falhe irreversivelmente!

As pernas vacilaram e deixou-se tomar sobre o túmulo de Klaus. Encolheu-se em forma de concha e chorou até engasgar com os próprios soluços. Foi quando um calafrio fez tremer até a última vértebra de sua coluna.

Valentina levantou de supetão e viu AQUILO que desafia as ciências, que marginaliza os crédulos aos grupos místicos da sociedade e leva as mentes fracas à loucura. Ali estava! Repousando sobre seu colo, o FANTASMA de Klaus!!! Seu corpo era completamente translúcido, e não exercia força alguma contra o dela! Em alguns pontos até ultrapassava sua pele, suas vestes! A moça levou a mão à boca e conteve um grito. O Fantasma pareceu se assustar também, e levantou em um rápido movimento.

Os dois ficaram de pé, um diante do outro. Ele, com uma expressão de espanto, ela, ainda tapando a boca, soluçando em copioso pranto. Foram se aproximando com as mãos rumo a um encontro, e tocaram-se vacilantes. A palma translúcida atravessou a mão humana de Valentina. Não puderam sentir o toque físico, mas sim uma sublime e cálida sensação. A moça tremeu ao ser invadida por aquela energia que irradiava por todos os membros. E as lágrimas brotaram com mais abundância, tamanha alegria e êxtase. Na tentativa de tomar o amado em seus braços, acabou por abraçar a si mesma. A sensação foi intensa, porém triste. Não podia abraçar aquele corpo descarnado.

- Eu não tinha mais esperanças de que pudesse me ver! Tenho tentado há tantos dias, meu amor! – disse o Fantasma, sôfrego.
- Eu o amo tanto... – disse, finalmente, em um sofrido soluço. – Por que me deixaste?! – arfou Valentina, quase desfalecendo de emoção.

Naquele momento, falar com Klaus era em tudo diferente, não somente por sua nova forma translúcida e imaterial. Era como se o tempo não corresse normalmente, como acontece em visões, que duram segundos, mas parecem uma eternidade. E ao despertar não se faz ideia de quanto tempo passou. Estaria ele adentrando no mundo dos vivos, ou ela (tão debilitada) no mundo dos mortos?

- Como você tem passado? – Perguntou o Fantasma, tentando fazer daquele reencontro um momento de alegrias e não de lágrimas. Afinal, não tinha certeza se aquilo se repetiria, ou se era uma chance única destinada aos mortos que muito sofrem por não terem dito adeus às pessoas queridas.
- Oh, querido Klaus! Viver me tem sido um terrível fardo desde que você se foi! Não fosse este milagre, amanhã estaria morta. Mas morrer não me é mais uma triste experiência, pois agora sei que me encontrarei contigo... – tratou de mudar de assunto ao notar que Klaus reprovava suas divagações, – Deve ter notado que minhas medidas diminuíram. Não sinto fome. Estou feia.
- Você continua perfeita! Talvez mais bela que antes! – Klaus perdeu-se em admiração ao analisar a amada, tão fragilizada.

O sangue voltou a correr pelas faces da moça, que corou como há muito não acontecia.
- E você? Como está?
- Deveras entediado. A maioria dos mortos só quer chorar por seus vivos e não posso reprová-los. Outros se empenham em vinganças fúteis, ou se divertem assombrando a família do coveiro. Alguns conseguem cruzar os portões do cemitério e andam pela cidade, amedrontando os andarilhos ou visitando os seus. Poucos conseguem comunicar-se com os vivos. Para um “novato”, estou em um nível fantasmagórico elevado, hahaha! É uma pena que não haja outros bardos aqui. Presumo que tenha sido ideia de minha mãe enterrar-me neste cemitério aborrecido. – disse, carrancudo.
- Todos concordaram que este era o local mais adequado para você ser enterrado. – estranhava cada sílaba que pronunciava. – Não é belo, mas como só temos dois cemitérios no vilarejo, e o segundo é por demais ordinário, cremos que essa seria melhor opção.
- Preferia estar ao lado dos fantasmas beberrões, que ser vizinho de Rupert Johnnes. – resmungou, e apontou para o túmulo vizinho, cujo dono era um avarento bancário que morrera junto ao cofre em um assalto.

Ela riu, ainda que frustrada por ter aprovado aquela escolha inconveniente. No entanto, sentiu-se aliviada ao perceber que a morte não levara de seu amado o senso de humor. Era o mesmo por quem se apaixonara!
- Lembra-se de Katrina?
- A vaidosa filha do joalheiro, atropelada por uma carroça?
- Exato. Ela passa o tempo a se lastimar pela cicatriz que o acidente deixou em seu rosto.
Pasma, olhou em volta para ver se era capaz de ver Katrina, ou ouvir suas lamúrias. Nada pôde ver. Sua capacidade de comunicar-se com os mortos restringia-se apenas a seu falecido noivo. Felizmente, aquilo lhe bastava.
- Quer dizer que os ferimentos permanecem depois da morte?
- Sim. Passamos a eternidade (ou sabe-se lá quanto tempo) com a aparência exata do momento em que morremos.

Klaus olhou para seu peito, e lá estava a chaga ensanguentada que a maldita flecha lhe abrira.
- Felizmente eu retirei a flecha antes de morrer, senão ela teria me acompanhado. Espero que minha camisa rasgada não esteja muito deselegante a seus olhos.
Valentina esboçou em seu rosto toda a dor que aquele ferimento lhe inspirava. Levou os dedos até a ferida, mas não pôde tocá-la.
- Não se preocupe, não dói. Não mais.
- Como isto aconteceu? – refletiu sobre quão dolorosos foram os últimos momentos de Klaus. “Sua morte não fora rápida... Como deve ter agonizado!” – pensou.
Ele hesitou. Finalmente escolheu as palavras e narrou o ocorrido.
- Bem... Eu estava voltando para o vilarejo, ansioso para encontrá-la. De repente, fui atingido em cheio. Caí do cavalo, e a queda tirou-me os sentidos. Minhas lembranças são vagas... Mas saiba que meu último pensamento foi para você.
- Você viu o autor do disparo? Conte-me e pedirei a meu pai que vingue sua morte!
- Não minha querida. Não vi quem atirou em mim. – respondeu, depois de uma prolongada pausa.
- Descobrirei quem fez isto a você. É uma promessa!
- Estou certo de que descobrirá. No entanto, estou irremediavelmente morto. Não há como reverter isso e já aceitei meu destino. O único motivo de sofrimento para mim é não poder tomá-la em seus braços.
Ambos calaram, pois compartilhavam daquela dor.

- Agora é chegado o momento mais triste que minha morte.
Ela indagou com os olhos imersos em lágrimas, sem poder imaginar algo pior que o terrível momento em que perdera seu amado.
- Extasia-me a possibilidade de podermos conversar novamente, assim como estremeço ao pensar que esta poderá ser uma despedida definitiva. Mas meus sentimentos não me são preciosos quando se trata de sua proteção. Você precisa voltar agora para casa, ou comentarão que está louca. Além disso, há muitos perigos na noite. Existem veredas tenebrosas, onde os caminhantes são abandonados até pela própria sombra. Se eu pudesse... – suspirou, enquanto tentava acariciar o rosto ruborizado da moça, transmitindo-lhe calor. –... Se eu pudesse, te acompanharia até em casa. Mas não consigo ultrapassar os portões do cemitério...
Novamente a dor, a angústia, a sensação de perda. Era como se o momento da morte de Klaus se repetisse.
- Como saberei se poderei vê-lo novamente?! Eu não posso deixá-lo! Não agora que o reencontrei! – ela já estava se desfazendo em lágrimas.
- Não sei, minha querida. Mas não desperdicemos este momento. Serei eternamente grato aos deuses! Ainda que não mais a veja, este reencontro me deixará satisfeito por toda a eternidade! Eu a amo, imensuravelmente.
Após esta bela declaração, tocaram os lábios, e o calor os invadiu.
- Eu também te amo. Para sempre! – murmurou, tentando conter o desespero que esganiçava sua voz.
- Agora vá, minha amada! Vá, e não fale a ninguém sobre isto!
- Eu voltarei! Eu voltarei! – dizia para ele, e para si mesma, enquanto corria. Quando olhou novamente para trás, ele não estava mais lá.

Por trás de uma árvore seca, o rapaz calado ficou. E de seus olhos brotavam belas gotas brilhosas, que pareciam lágrimas. Lágrimas de um Fantasma.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo II

Ao acordar no dia seguinte, Valentina ainda estava em estado negação. No entanto, desistira da ideia de sair em busca de Klaus, dada a debilidade induzida pelos calmantes. Tampouco podia pensar em qualquer coisa. Ao mergulhar em si, ao perscrutar sua mente, tudo era um grande e infindo branco. Limitava-se a ouvir, inerte, o falatório dos espectadores de sua desgraça que se reuniam em volta do leito. Cochichavam sobre o ocorrido, ignorando sua presença.

- Ouvi dizer que ele foi torturado! É verdade? – perguntou uma senhora mexeriqueira.
- Na verdade ele foi atingido por uma flecha. Sabe como as pessoas exageram, não é querida? – respondeu a mãe de Valentina.

Em outro canto, o pai conversava com um amigo.
- Você sabe que este casamento não me interessava muito. A família dele era riquíssima, mas o jovem almejava uma vida campestre, sem grandes luxos. Que pai desnaturado desejaria tal sorte para uma filha?!
- Quem sabe meu filho não a agrade? – respondeu o decrépito e maçante conde Gundbrandsen.
- Dizem que foram atacados por uma das tribos da floresta. – cochichou uma empregada à outra.
Seu desejo era expulsar todos aos berros dali. Mas não tinha forças, não conseguia falar. Pareciam ter-lhe roubado o ar dos pulmões e a voz.

Chegada a hora do funeral e minimizado o efeito dos sedativos, chorou sobre o corpo de seu amado klaus. Beijava-lhe os lábios e acariciava-lhe o rosto como se aquele último momento fosse a tão sonhada lua de mel.

- “Devo permanecer neste mundo estúpido que, sem você, não valerá mais que uma pocilga?”*. De certo que não, meu amor. Não temas, querido. Não te deixarei sozinho! Faremos deste triste sepulcro nossa alegre casa. Juntar-me-ei a ti!
Tiveram de segurá-la para que não se atirasse na sepultura junto ao morto. O médico da família, sempre a postos, aplicou com maestria uma de suas injeções eficazes. Sem mais forças, cedeu novamente ao efeito dos calmantes.


*William Shakespeare


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Os dias que se seguiram foram de dor e sofrimento para a pobre moça. Revestida de luto, nada fazia além de rezar pela alma de Klaus. Nem mesmo descia ao jardim, que tanto apreciava. Deixou que suas flores murchassem e aos poucos deixava-se morrer também. Suas faces rosadas perderam a cor, adquirindo homogênea palidez por todo o corpo. Seus olhos brilhantes foram tomados por profundas olheiras, e seu corpo tornou-se magérrimo.

Todos os dias a moça ia ao cemitério e velava o túmulo de seu amado por horas. Retirava as ervas que insistiam em enroscar na lápide e adornava o sepulcro com flores azuis que brotavam na fértil necrópole. Os pais, desconhecendo o hábito da filha, supunham que Valentina saía para encontrar as amigas, e que seu estado melhoraria com o contato social. Por não compartilharem de seu infortúnio, a morte de Klaus já deveria estar mais que superada. “Afinal, já se passara um mês”. Eles riam, cantavam e se banqueteavam com a maior naturalidade. Como se o pesar que demonstraram no enterro do rapaz não devesse ser encenado por mais que um dia.

- Por que continua usando essas roupas, minha filha? Preto não lhe cai bem!- perguntou a fútil mãe.
- Por que estou de luto. – respondeu, entre dentes.
- Ah, mas não devia ficar tão triste! Se exigi sua presença esta noite no jantar, é porque receberemos um ilustre convidado! Você mal pode imaginar a surpresa que lhe aguarda! Vamos, troque de roupas! Ponha o vestido rosa e a gargantilha de diamantes que seu pai lhe deu!
- Desculpe-me, mas sinto não poder fazer cortesias a ninguém. E quanto ao luto, não tirarei nunca.
- Mas filha, o Conde Gundbrandsen e o filho estão vindo jantar conosco! Já devem estar chegando.
- O que?! – Valentina se levantou da mesa ruidosamente, sem poder acreditar em tamanha insensibilidade.
- Olha os modos, menina! – esbravejou o pai. - Faça o que sua mãe diz!
 - Pois bem. Jantarei com o ilustríssimo conde e seu filho. Mas saibam que quando me propuser casamento, direi a ele que não o amo e que sempre pertencerei a Klaus! Não me casarei com homem algum ainda que me torne uma planta seca e estéril pelo resto de meus dias, que de certo serão abreviados pela dor que me causam com tais ardis!
- Vá para seu quarto! – agora foi o velho quem se levantou, batendo as mãos sobre a louça e talheres. – Mas não pense que escapará da surra que lhe darei!
- Castigue-me. Mate-me se assim preferir. Assim me poupará de cometer contra minha vida imperdoável transgressão! Mate-me, pai! Mate-me se verdadeiramente me estimas!

O homem levantou-se vermelho de ira, com as veias a ponto de explodirem. Neste momento, faltou-lhe o ar e o coração ameaçou falhar. A mulher correu para ampará-lo e expulsou Valentina aos berros.

- Você quer matar seu pai?! Filha desnaturada! Ingrata! Saia daqui antes que acrescente a morte de seu pai à sua infinita lista de pecados! Saia! Trataremos do assunto nós mesmos. Se bem nos parecer, acertaremos o noivado hoje mesmo! Oras! Essas moças de hoje tem muitas regalias!

Desolada, Valentina chorou até não mais possuir lágrimas para verter. Preferia a morte a entregar-se para outro homem.

- Ai de mim, Senhor, ai de mim! Perdoe minha pobre alma se algum dia for à Tua presença antes que Tu a chames! Deixai-a entrar no céu, pois é por desespero que cogita tais heresias!

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...