quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo II

Ao acordar no dia seguinte, Valentina ainda estava em estado negação. No entanto, desistira da ideia de sair em busca de Klaus, dada a debilidade induzida pelos calmantes. Tampouco podia pensar em qualquer coisa. Ao mergulhar em si, ao perscrutar sua mente, tudo era um grande e infindo branco. Limitava-se a ouvir, inerte, o falatório dos espectadores de sua desgraça que se reuniam em volta do leito. Cochichavam sobre o ocorrido, ignorando sua presença.

- Ouvi dizer que ele foi torturado! É verdade? – perguntou uma senhora mexeriqueira.
- Na verdade ele foi atingido por uma flecha. Sabe como as pessoas exageram, não é querida? – respondeu a mãe de Valentina.

Em outro canto, o pai conversava com um amigo.
- Você sabe que este casamento não me interessava muito. A família dele era riquíssima, mas o jovem almejava uma vida campestre, sem grandes luxos. Que pai desnaturado desejaria tal sorte para uma filha?!
- Quem sabe meu filho não a agrade? – respondeu o decrépito e maçante conde Gundbrandsen.
- Dizem que foram atacados por uma das tribos da floresta. – cochichou uma empregada à outra.
Seu desejo era expulsar todos aos berros dali. Mas não tinha forças, não conseguia falar. Pareciam ter-lhe roubado o ar dos pulmões e a voz.

Chegada a hora do funeral e minimizado o efeito dos sedativos, chorou sobre o corpo de seu amado klaus. Beijava-lhe os lábios e acariciava-lhe o rosto como se aquele último momento fosse a tão sonhada lua de mel.

- “Devo permanecer neste mundo estúpido que, sem você, não valerá mais que uma pocilga?”*. De certo que não, meu amor. Não temas, querido. Não te deixarei sozinho! Faremos deste triste sepulcro nossa alegre casa. Juntar-me-ei a ti!
Tiveram de segurá-la para que não se atirasse na sepultura junto ao morto. O médico da família, sempre a postos, aplicou com maestria uma de suas injeções eficazes. Sem mais forças, cedeu novamente ao efeito dos calmantes.


*William Shakespeare


---


Os dias que se seguiram foram de dor e sofrimento para a pobre moça. Revestida de luto, nada fazia além de rezar pela alma de Klaus. Nem mesmo descia ao jardim, que tanto apreciava. Deixou que suas flores murchassem e aos poucos deixava-se morrer também. Suas faces rosadas perderam a cor, adquirindo homogênea palidez por todo o corpo. Seus olhos brilhantes foram tomados por profundas olheiras, e seu corpo tornou-se magérrimo.

Todos os dias a moça ia ao cemitério e velava o túmulo de seu amado por horas. Retirava as ervas que insistiam em enroscar na lápide e adornava o sepulcro com flores azuis que brotavam na fértil necrópole. Os pais, desconhecendo o hábito da filha, supunham que Valentina saía para encontrar as amigas, e que seu estado melhoraria com o contato social. Por não compartilharem de seu infortúnio, a morte de Klaus já deveria estar mais que superada. “Afinal, já se passara um mês”. Eles riam, cantavam e se banqueteavam com a maior naturalidade. Como se o pesar que demonstraram no enterro do rapaz não devesse ser encenado por mais que um dia.

- Por que continua usando essas roupas, minha filha? Preto não lhe cai bem!- perguntou a fútil mãe.
- Por que estou de luto. – respondeu, entre dentes.
- Ah, mas não devia ficar tão triste! Se exigi sua presença esta noite no jantar, é porque receberemos um ilustre convidado! Você mal pode imaginar a surpresa que lhe aguarda! Vamos, troque de roupas! Ponha o vestido rosa e a gargantilha de diamantes que seu pai lhe deu!
- Desculpe-me, mas sinto não poder fazer cortesias a ninguém. E quanto ao luto, não tirarei nunca.
- Mas filha, o Conde Gundbrandsen e o filho estão vindo jantar conosco! Já devem estar chegando.
- O que?! – Valentina se levantou da mesa ruidosamente, sem poder acreditar em tamanha insensibilidade.
- Olha os modos, menina! – esbravejou o pai. - Faça o que sua mãe diz!
 - Pois bem. Jantarei com o ilustríssimo conde e seu filho. Mas saibam que quando me propuser casamento, direi a ele que não o amo e que sempre pertencerei a Klaus! Não me casarei com homem algum ainda que me torne uma planta seca e estéril pelo resto de meus dias, que de certo serão abreviados pela dor que me causam com tais ardis!
- Vá para seu quarto! – agora foi o velho quem se levantou, batendo as mãos sobre a louça e talheres. – Mas não pense que escapará da surra que lhe darei!
- Castigue-me. Mate-me se assim preferir. Assim me poupará de cometer contra minha vida imperdoável transgressão! Mate-me, pai! Mate-me se verdadeiramente me estimas!

O homem levantou-se vermelho de ira, com as veias a ponto de explodirem. Neste momento, faltou-lhe o ar e o coração ameaçou falhar. A mulher correu para ampará-lo e expulsou Valentina aos berros.

- Você quer matar seu pai?! Filha desnaturada! Ingrata! Saia daqui antes que acrescente a morte de seu pai à sua infinita lista de pecados! Saia! Trataremos do assunto nós mesmos. Se bem nos parecer, acertaremos o noivado hoje mesmo! Oras! Essas moças de hoje tem muitas regalias!

Desolada, Valentina chorou até não mais possuir lágrimas para verter. Preferia a morte a entregar-se para outro homem.

- Ai de mim, Senhor, ai de mim! Perdoe minha pobre alma se algum dia for à Tua presença antes que Tu a chames! Deixai-a entrar no céu, pois é por desespero que cogita tais heresias!

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