terça-feira, 30 de maio de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo V

Os dias que se seguiram foram rotineiros. Valentina ia ao cemitério, trocava juras de amor com o Fantasma. Permaneceu, inclusive, no propósito de morrer. Retornava para casa pelos mais sombrios e perigosos caminhos. A sensação de ser observada não cessou. Todavia, o máximo que lhe aconteceu foi ser atacada por dois ou três morcegos que tiravam rasantes próximos à ponte.
Cruzava com o cavalheiro frequentemente, e este insistia em levá-la até sua casa (contra sua vontade, obviamente). Descobriu que seu nome era Nikolai Slavomir, e que herdara um castelo pouco afastado da cidade. Fora isso, o cavalheiro nada mais revelou sobre si. No entanto, seu sotaque pesado e a pronúncia forte do “r” indicavam que ele era de terras bem distantes. Talvez de outro continente.
- Tens negócios por aqui? Ou estás empregando tuas noites a “seguir-me”? – Perguntou Valentina.
- Se continuo nesse tedioso vilarejo, é por ti. – Nikolai parou à frente da moça, interrompendo a caminhada - É chegada a hora de saberes que gosto de ti. Que te amo.
- Pois bem. Saibas que pretendo morrer. E isto, para juntar-me a meu amor, o ÚNICO de minha vida. – Valentina respondeu com veemência.
Os olhos azuis de Nikolai encheram-se de mágoa. Valentina apiedou-se e tentou amenizar suas últimas palavras:
- Não deverias desperdiçar teu tempo a tentar conquistar um coração selado, como o meu.
- Minha querida, tenho até o último de teus dias para tentar. E se isto não for suficiente, talvez mais: a eternidade.
- Agora blasfemas ao proferir tais crenças.
- Hahahaha! Donzelas de teu tipo me comprazem: destemidas, porém tolas.
- Isto foi rude! – exclamou, boquiaberta. Era a primeira vez que aquele cavalheiro faltava-lhe com o respeito. - Peço que não me acompanhes mais. Sei o caminho de casa, assim como posso perfeitamente me defender. – pegou uma pedra e ergueu-a de forma ameaçadora, sugerindo que a usaria caso necessário.
Nikolai sumiu como que por encanto, deixando apenas seu riso sinistro no breu.

---

Na noite seguinte Valentina revelou a Klaus a existência de Nikolai. Relatou todo ocorrido e lamentou ter se deixado acompanhar por um desconhecido. E enquanto confessava, deu-se conta do quanto aquilo fora imprudente e inapropriado. O noivo pediu que não fosse mais ao cemitério, pelo menos por alguns dias. Em vão.
- Virei aqui todos os dias, até mudar-me definitivamente para teu túmulo.
- Ainda com essas idéias tolas?!
- Também me tomas por tola?! Trata-se de nosso amor! – profundamente magoada, saiu às pressas de sua presença, pisando sobre flores e sepulturas.
Para aumentar seu desgosto, mal saiu do cemitério e lá estava Nikolai, sentado em um banco com ar nobre e riso cínico. Valentina tentou ignorá-lo.
- Estás atrapalhando meu propósito... Enquanto estiver perto, a Morte não virá. - suspirou, ao perceber que Nikolai caminhava a seu lado.
- Estás enganada. Quando ela vier, não me colocarei entre vós. Não te livrarei. É uma promessa.
- Mas não desejo sua companhia. Isto já causou problemas demais entre meu noivo e eu.
- Diga a seu noivo que duelemos então. O vencedor ganhará teu coração.
Valentina começava a por em questão a maturidade daquele cavalheiro. Não se sentia mais propensa a levá-lo a sério, ou irritar-se com ele. Seria inútil.
- Meu noivo e você jamais poderiam duelar...
- Diga-me, Valentina. O que poderia fazer para ganhar teu amor?
- Não há nada que possa fazer para tal, senhor. Se quiseres ao menos minha estima, apenas deixe-me seguir meu caminho. A única companhia que desejo nesta triste noite, é a da Ceifadora das almas.
- Querida, és tão bela quanto sombria. – riu Nikolai. – Providenciarei este encontro.
Como de costume, Nikolai pareceu sumir por trás de sua capa negra. Valentina estremeceu.
A atmosfera estava úmida, cheia de chuva disfarçada. E seu corpo era como aquele ar: completamente feito de lágrimas contidas. Não demoraria até precipitar por inteiro, e escorrer pelo chão, até sumir... Ao chegar na ponte, sentou-se no parapeito e pôs-se a observar a agitação que o sereno provocava na superfície do lago. 
- Perdoem-me os céus por desejar que mãos de vento me lancem nas profundezas do córrego, e que nada além de minha alma torne a subir!
De súbito, foi surpreendida por um crescente vozerio. Era um grupo de rapazes, que se aproximava. Dentre os três beberrões, estava seu pretendente Arthur. O rapaz, terrivelmente debilitado pelo ópio, usava os ombros amigos como muletas.
- Valentina! És tu de verdade, ou um anjo mal disfarçado?
A moça sobressaltada escondeu o rosto entre os cabelos.
- Amigos, sois maus! Maldita seja a mistura que me serviram por álcool, pois agora até em delírio me vejo diante desta mulher! Não basta ter de me casar com ela? Vá embora Valentina! Em meu peito só há lugar para Barbara.
Aquilo a surpreendeu, pois imaginava que o filho do conde a amasse.
- Arthur, não é fantasma ou demônio. É sua noiva! – disse o mais sóbrio. – Mostre algum respeito!
- Tu sim, és mau, Arthur! És um ingrato! Quem, neste vilarejo miserável, não desejaria passar a noite sobre os seios de Valentina?!– disse, entre soluços o outro amigo, o mais bêbado. E depois explodiu em ruidoso riso.
- Perdoe-me Valentina! É que não a amo! Eu amo Bárbara! No entanto, casar-me-ei contigo, pois é meu dever... Tu sabes, somos ricos... – Arthur desvencilhou-se dos amigos e caiu sobre os braços de Valentina, que o amparou. O rapaz continuou, em tom de confidência – Pro inferno teu dinheiro e o meu... Mas teu noivo morreu... Não quero que Barbara seja morta também! Apesar de tudo, saibas que não te amo... Nunca te amarei... Desculpe!
Um terrível tremor se apoderou de Valentina. A moça quase tombou ao decifrar o significado daquelas palavras. O amigo mais sóbrio antecipou-se para apoiá-la, enquanto Arthur foi ao chão.
- O que ele está dizendo? – Valentina jogou-se sobre Arthur e segurou-lhe pelas golas. Os olhos da moça já emanavam em uma torrente de lágrimas.
- Peço que o perdoe, pois não sabe o que diz. – argumentou o amigo sóbrio.
Valentina livrou-se dos braços protetores e sacudiu Arthur para arrancar a verdade em meio aos soluços ébrios do rapaz.
- Se tu sabes algo sobre a morte de Klaus, conte-me agora! Exijo-te! Suplico-te!
- Solte-me! Se aquela a quem eu amo nos surpreender assim, estará tudo acabado... Tudo. – protestou Arthur, porém sem forças para livrar-se de Valentina.
- Se disseres o que sabes, juro que não mais me verás. Não precisarás casar comigo, pois não estarei mais aqui entre vós. Suplico-te que fale!
- Jure... – respondeu Arthur, e foi ao chão.
- Juro pela saúde de meu pai, pela vida de minha mãe!
- Terás de jurar por outros... Depois que eu falar, vai desejar aos teus pais algo mais terrível que a morte.
Aquelas palavras carregadas de álcool faziam sentido, por mais doloroso que fosse.
- Jure Valentina...
- Juro!
- Por quem tu juras?
- Por Deus, pelo rei, pelo eterno descanso de meu falecido noivo! Fale!
- Não o leve a sério. – interviu o amigo sóbrio. - Está bêbado, não vês? Delira.
- Eu não estou bêbado... Deixe-me falar! – empurrou o amigo, e continuou sem meias palavras - Seu noivo está morto porque nossos pais assim o quiseram.
- O que estás dizendo???
- Isto mesmo, Valentina! Foi uma emboscada... Mas não matarão Bárbara. Antes eu mato meu pai, o teu, o padre, até mesmo o diabo!

Valentina tombou para o lado, tão pavorosa era aquela informação. Ao levantar-se, nada mais pôde fazer, além de correr, correr, correr. Embrenhou-se na parte mais densa do bosque, de forma que não soube quando o dia raiou. Deitou-se catatônica entre as raízes de uma árvore centenária. A Mãe Natureza apiedou-se de seu choro, de forma que nem mesmo uma formiga a molestou.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Adélia

Conto dedicado à minha amiga Lane... :) Para nossa possível coletânea sobre mulheres... 

---

ADÉLIA

O calor estava de matar naquela tarde abafada de outubro. A salinha cor de areia decorada com cactos artificiais era como a representação de um deserto. Adélia jazia imóvel no sofá, imersa em seu deserto pessoal... Na vastidão inóspita de sua psiquê... Numa espécie agonia solitária e quieta... A respiração escapava compassada pela moldura rubra de seus lábios. A pele formigava em contato com estofado barato e úmido de transpiração. O decote entreaberto mostrava uma quantidade generosa de suor represado entre os seios. O tempo, por sua vez, também parecia confinado entre os ponteiros do relógio de parede quebrado.

Por fim, chaves giraram as engrenagens da fechadura numa seqüência bem peculiar de duas voltas e meia, seguida de um solavanco. A porta se abriu e os sinos de alerta tilintaram. Victor entrou e deparou-se com a figura feminina em seu sofá. Adélia lembrava as musas febris que inspiraram poetas ao longo dos séculos. Mas a fragilidade de suas feições contrastava com as roupas negras e os impenetráveis óculos escuros.

- Ora, ora. A bela adormecida não vai acordar? – disse irônico, enquanto contornava a orla rendada do sutiã de Adélia com o dedo indicador.
- Não estou dormindo, Victor. – respondeu Adélia, sem se mover um milímetro sequer.
- Pois pra mim, pareceu que você estava dormindo. – queixou-se Victor, afastando-se subitamente. - Se fosse a polícia ou um dos Niners, estaríamos fodidos, porra. Você precisa manter os olhos abertos.
- Se fosse qualquer pessoa além de você, eu saberia. Meus ouvidos estavam bem atentos. Todos os meus sentidos são bem eficientes.
- Claro que são... Claro! – bufou, com uma expressão confusa de riso e raiva... Como foi o dia? 
- Poucos clientes. Livre-se dessa porcaria. Esse bagulho não presta, Victor. Só vendi pra viciada do primeiro andar. E tive que dar um desconto.
- Porra! – esbravejou Victor, jogando contra a parede um dos poucos vasinhos decorativos que restavam. - Não vamos conseguir pagar os Niners até o fim da semana!

Adélia se levantou como que na recuperação súbita de um coma. Enxugou o suor da testa e prendeu os longos cabelos negros em um coque alto.

- Se você não consertar esse ventilador, não sobreviveremos até lá de uma forma ou de outra.  – disse a moça, dirigindo-se à porta.
- Aonde você vai? – perguntou, com os braços abertos em fúria.
- Vou para casa. – respondeu Adélia, enquanto acendia um cigarro. – Não agüento mais esse calor. Já embalei tudo. Fiz seu serviço e o meu. Chame alguém pra ajudá-lo com as vendas... Se é que mais alguém vai querer essa porcaria batizada.

Victor colocou-se diante da porta, impedindo que a moça saísse.

- Pra casa?! Você nunca chamou aquela porcaria de casa. Mal pisa lá. Porque isso agora? Tá me enrolando, Adélia?! Tá querendo me fazer de otário?! – o rapaz vociferava bem próximo de seu rosto, impregnando tudo com o hálito impregnado de álcool, cocaína e cigarros.

Àquela altura, Adélia mal podia lembrar que um dia o amara. Que entregara a melhor parte de sua vida a um belo e amável Victor, e que em algum momento foram o mais feliz casal do mundo.

- Aqui está um inferno! Preciso sair deste buraco nem que seja por uma noite! – e sua voz era quase uma súplica.

A mão de Victor estalou ruidosamente na face direita da moça, que foi ao chão. De olhos enxutos, Adélia recolheu os óculos quebrados e se levantou em silêncio.

- Olha o que você me fez fazer! Olha só! – Victor iniciou uma marcha nervosa na sala, em um misto de arrependimento e raiva. – Porra... Por favor, me perdoe. Fique comigo, Adélia. Não sei mais o que fazer! Os Niners querem tirar minha pele. Sem você ao meu lado, eu não consigo. Por favor, fique!
Ele se reaproximou e prendeu o rosto da moça entre suas mãos e beijou seus lábios cerrados.
- Pare, Victor. Por favor, pare.

Adélia tentou se desvencilhar, mas as mãos do rapaz já percorriam o interior de sua calça jeans em apressada busca por resquícios de paixão. No minuto seguinte ele estava dentro dela, num coito incômodo, desajeitado, seco. Ela cedeu. Cansara de resistir.

Em tempos passados, ela teria chorado copiosamente pela agressão sofrida.

Um dia atrás, ela teria apontado uma arma para ele e diria que se a agredisse novamente, estouraria seus miolos.

Mas não naquela tarde quente e abafada de outubro.

Ao fim do ato, ela abotoou a calça e disse a Victor que ainda assim iria para casa.

- Que seja. Faça o que quiser. – respondeu sem olhá-la nos olhos. Victor sentia vergonha de si em seus breves momentos de lucidez.

Ao sair do prédio abafado, Adélia respirou aliviada. Os últimos raios de sol se retiravam e uma brisa gelada começava a soprar contra sua pele. Caminhou lentamente rumo à casa de seus pais, enquanto fumava seu último Marlboro. A fumaça saia de sua boca lentamente – não como o bafejar de um dragão furioso, mas como um sopro sutil a atravessar o diastema entre seus dentes.

Era agradável estar do lado de fora depois de semanas à fio trancafiada no apartamento velho e decadente que dividia com Victor. No início, ali fora uma espécie de refúgio. Uma miniatura de Éden, onde desfrutavam da presença sempre nua, um do outro. Eles se amaram ao extremo... A ponto de esquecer que o mundo era mundo. Entre tórridos beijos e profundos suspiros, uma dose ou outra, um quarto, uma aplicação. Entre conversas mais profundas que o oceano, um rasgo pra acelerar... Entre uma palavra torta, uma acusação, alguns miligramas disso ou daquilo para acalmar... Pra esquecer que o mundo continuava sendo mundo, com sua atraente porta escancarada para a perdição... Como uma boca gulosa que nunca se farta de tragar as almas dos que sonham...

- Que inferno! – Bufou, ao perceber que a sensação prazerosa que sentira há pouco estava aos poucos se esvaindo. A realidade a perseguia como um demônio opressor, que impunha as mãos sobre sua cabeça e turvava seus pensamentos. Lá estava ela, novamente perguntando a si mesma se de fato vivenciara as douradas lembranças as quais se apegava para continuar vivendo, ou se tudo não passara de uma ilusão... Um belo e saudoso simulacro criado por todas as substâncias que ingeriram juntos, e que, por algum motivo, não surtiam mais o efeito esperado. Não sabia mais o que pensar. As drogas eram melhores antigamente? Ou seu relacionamento estava na mais obscura fossa? Ou talvez sua vida inteira tenha se resumido a uma sequência de abismos, e abusos, derrotas e ilusões. Sentiu-se novamente a sufocar. As pernas falharam tombou de joelhos. Não havia lua, nem brisa, nem asfalto, casas, ou prédios, ou nada... Estava de volta ao seu deserto sem fim, mas não podia ver... Estava tão escuro... Sentia a língua enrolando no céu da boca e aos poucos ficava cada vez mais difícil de respirar.

Quando estava prestes a expirar, ouviu bem ao longe uma sequência de sons que era bem peculiar... Chaves girando numa fechadura, duas voltas e meia, seguida de um solavanco... Uma porta se abrindo e sinos tilintando... Como que há milhas de distância dali. Uma voz gritava seu nome e ela soube que era de Victor. Ela tentava respondê-lo e pedir-lhe ajuda, mas era em vão, pois seus gritos saiam como um engasgo feio e pastoso. Logo mais, sentiu seu corpo estremecer inteiro e em um relance pôde ver o rosto desesperado de seu amado bem próximo do seu. Ele parecia gritar a plenos pulmões, mas logo suas feições se tornaram um vulto...um borrão... e tudo escureceu novamente.

Quando o socorro chegou, deparou-se com duas emergências em vez de uma. Adélia jazia imóvel sobre o sofá de onde nunca saíra. No chão, o corpo de Victor ainda quente sobre uma poça do próprio sangue. Separaram-lhe as mãos e rabiscaram o laudo sem grande perícia: "overdose irreversível", "suicídio por arma de fogo". O relógio ainda marcava 11:11, e aqueles números finalmente fizeram sentido: era tarde demais.  




ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...