Os
dias que se seguiram foram rotineiros. Valentina ia ao cemitério, trocava juras
de amor com o Fantasma. Permaneceu, inclusive, no propósito de morrer.
Retornava para casa pelos mais sombrios e perigosos caminhos. A sensação de ser
observada não cessou. Todavia, o máximo que lhe aconteceu foi ser atacada por
dois ou três morcegos que tiravam rasantes próximos à ponte.
Cruzava
com o cavalheiro frequentemente, e este insistia em levá-la até sua casa
(contra sua vontade, obviamente). Descobriu que seu nome era Nikolai Slavomir,
e que herdara um castelo pouco afastado da cidade. Fora isso, o cavalheiro nada
mais revelou sobre si. No entanto, seu sotaque pesado e a pronúncia forte do
“r” indicavam que ele era de terras bem distantes. Talvez de outro continente.
-
Tens negócios por aqui? Ou estás empregando tuas noites a “seguir-me”? – Perguntou
Valentina.
-
Se continuo nesse tedioso vilarejo, é por ti. – Nikolai parou à frente da moça,
interrompendo a caminhada - É chegada a hora de saberes que gosto de ti. Que te
amo.
-
Pois bem. Saibas que pretendo morrer. E isto, para juntar-me a meu amor, o
ÚNICO de minha vida. – Valentina respondeu com veemência.
Os
olhos azuis de Nikolai encheram-se de mágoa. Valentina apiedou-se e tentou
amenizar suas últimas palavras:
-
Não deverias desperdiçar teu tempo a tentar conquistar um coração selado, como
o meu.
-
Minha querida, tenho até o último de teus dias para tentar. E se isto não for
suficiente, talvez mais: a eternidade.
-
Agora blasfemas ao proferir tais crenças.
-
Hahahaha! Donzelas de teu tipo me comprazem: destemidas, porém tolas.
-
Isto foi rude! – exclamou, boquiaberta. Era a primeira vez que aquele
cavalheiro faltava-lhe com o respeito. - Peço que não me acompanhes mais. Sei o
caminho de casa, assim como posso perfeitamente me defender. – pegou uma pedra
e ergueu-a de forma ameaçadora, sugerindo que a usaria caso necessário.
Nikolai
sumiu como que por encanto, deixando apenas seu riso sinistro no breu.
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Na
noite seguinte Valentina revelou a Klaus a existência de Nikolai. Relatou todo
ocorrido e lamentou ter se deixado acompanhar por um desconhecido. E enquanto
confessava, deu-se conta do quanto aquilo fora imprudente e inapropriado. O
noivo pediu que não fosse mais ao cemitério, pelo menos por alguns dias. Em
vão.
-
Virei aqui todos os dias, até mudar-me definitivamente para teu túmulo.
-
Ainda com essas idéias tolas?!
-
Também me tomas por tola?! Trata-se de nosso amor! – profundamente magoada,
saiu às pressas de sua presença, pisando sobre flores e sepulturas.
Para
aumentar seu desgosto, mal saiu do cemitério e lá estava Nikolai, sentado em um
banco com ar nobre e riso cínico. Valentina tentou ignorá-lo.
-
Estás atrapalhando meu propósito... Enquanto estiver perto, a Morte não virá. -
suspirou, ao perceber que Nikolai caminhava a seu lado.
-
Estás enganada. Quando ela vier, não me colocarei entre vós. Não te livrarei. É
uma promessa.
-
Mas não desejo sua companhia. Isto já causou problemas demais entre meu noivo e
eu.
-
Diga a seu noivo que duelemos então. O vencedor ganhará teu coração.
Valentina
começava a por em questão a maturidade daquele cavalheiro. Não se sentia mais
propensa a levá-lo a sério, ou irritar-se com ele. Seria inútil.
-
Meu noivo e você jamais poderiam duelar...
-
Diga-me, Valentina. O que poderia fazer para ganhar teu amor?
-
Não há nada que possa fazer para tal, senhor. Se quiseres ao menos minha
estima, apenas deixe-me seguir meu caminho. A única companhia que desejo nesta
triste noite, é a da Ceifadora das almas.
-
Querida, és tão bela quanto sombria. – riu Nikolai. – Providenciarei este
encontro.
Como
de costume, Nikolai pareceu sumir por trás de sua capa negra. Valentina
estremeceu.
A
atmosfera estava úmida, cheia de chuva disfarçada. E seu corpo era como aquele
ar: completamente feito de lágrimas contidas. Não demoraria até precipitar por
inteiro, e escorrer pelo chão, até sumir... Ao chegar na ponte, sentou-se no
parapeito e pôs-se a observar a agitação que o sereno provocava na superfície
do lago.
-
Perdoem-me os céus por desejar que mãos de vento me lancem nas profundezas do
córrego, e que nada além de minha alma torne a subir!
De
súbito, foi surpreendida por um crescente vozerio. Era um grupo de rapazes, que
se aproximava. Dentre os três beberrões, estava seu pretendente Arthur. O
rapaz, terrivelmente debilitado pelo ópio, usava os ombros amigos como muletas.
-
Valentina! És tu de verdade, ou um anjo mal disfarçado?
A
moça sobressaltada escondeu o rosto entre os cabelos.
-
Amigos, sois maus! Maldita seja a mistura que me serviram por álcool, pois
agora até em delírio me vejo diante desta mulher! Não basta ter de me casar com
ela? Vá embora Valentina! Em meu peito só há lugar para Barbara.
Aquilo
a surpreendeu, pois imaginava que o filho do conde a amasse.
-
Arthur, não é fantasma ou demônio. É sua noiva! – disse o mais sóbrio. – Mostre
algum respeito!
-
Tu sim, és mau, Arthur! És um ingrato! Quem, neste vilarejo miserável, não
desejaria passar a noite sobre os seios de Valentina?!– disse, entre soluços o
outro amigo, o mais bêbado. E depois explodiu em ruidoso riso.
-
Perdoe-me Valentina! É que não a amo! Eu amo Bárbara! No entanto, casar-me-ei contigo,
pois é meu dever... Tu sabes, somos ricos... – Arthur desvencilhou-se dos
amigos e caiu sobre os braços de Valentina, que o amparou. O rapaz continuou,
em tom de confidência – Pro inferno teu dinheiro e o meu... Mas teu noivo
morreu... Não quero que Barbara seja morta também! Apesar de tudo, saibas que
não te amo... Nunca te amarei... Desculpe!
Um
terrível tremor se apoderou de Valentina. A moça quase tombou ao decifrar o
significado daquelas palavras. O amigo mais sóbrio antecipou-se para apoiá-la,
enquanto Arthur foi ao chão.
-
O que ele está dizendo? – Valentina jogou-se sobre Arthur e segurou-lhe pelas
golas. Os olhos da moça já emanavam em uma torrente de lágrimas.
-
Peço que o perdoe, pois não sabe o que diz. – argumentou o amigo sóbrio.
Valentina
livrou-se dos braços protetores e sacudiu Arthur para arrancar a verdade em
meio aos soluços ébrios do rapaz.
-
Se tu sabes algo sobre a morte de Klaus, conte-me agora! Exijo-te! Suplico-te!
-
Solte-me! Se aquela a quem eu amo nos surpreender assim, estará tudo acabado...
Tudo. – protestou Arthur, porém sem forças para livrar-se de Valentina.
-
Se disseres o que sabes, juro que não mais me verás. Não precisarás casar
comigo, pois não estarei mais aqui entre vós. Suplico-te que fale!
-
Jure... – respondeu Arthur, e foi ao chão.
-
Juro pela saúde de meu pai, pela vida de minha mãe!
-
Terás de jurar por outros... Depois que eu falar, vai desejar aos teus pais
algo mais terrível que a morte.
Aquelas
palavras carregadas de álcool faziam sentido, por mais doloroso que fosse.
-
Jure Valentina...
-
Juro!
-
Por quem tu juras?
-
Por Deus, pelo rei, pelo eterno descanso de meu falecido noivo! Fale!
-
Não o leve a sério. – interviu o amigo sóbrio. - Está bêbado, não vês? Delira.
-
Eu não estou bêbado... Deixe-me falar! – empurrou o amigo, e continuou sem
meias palavras - Seu noivo está morto porque nossos pais assim o quiseram.
-
O que estás dizendo???
-
Isto mesmo, Valentina! Foi uma emboscada... Mas não matarão Bárbara. Antes eu
mato meu pai, o teu, o padre, até mesmo o diabo!
Valentina
tombou para o lado, tão pavorosa era aquela informação. Ao levantar-se, nada
mais pôde fazer, além de correr, correr, correr. Embrenhou-se na parte mais
densa do bosque, de forma que não soube quando o dia raiou. Deitou-se
catatônica entre as raízes de uma árvore centenária. A Mãe Natureza apiedou-se
de seu choro, de forma que nem mesmo uma formiga a molestou.