quarta-feira, 24 de maio de 2017

Adélia

Conto dedicado à minha amiga Lane... :) Para nossa possível coletânea sobre mulheres... 

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ADÉLIA

O calor estava de matar naquela tarde abafada de outubro. A salinha cor de areia decorada com cactos artificiais era como a representação de um deserto. Adélia jazia imóvel no sofá, imersa em seu deserto pessoal... Na vastidão inóspita de sua psiquê... Numa espécie agonia solitária e quieta... A respiração escapava compassada pela moldura rubra de seus lábios. A pele formigava em contato com estofado barato e úmido de transpiração. O decote entreaberto mostrava uma quantidade generosa de suor represado entre os seios. O tempo, por sua vez, também parecia confinado entre os ponteiros do relógio de parede quebrado.

Por fim, chaves giraram as engrenagens da fechadura numa seqüência bem peculiar de duas voltas e meia, seguida de um solavanco. A porta se abriu e os sinos de alerta tilintaram. Victor entrou e deparou-se com a figura feminina em seu sofá. Adélia lembrava as musas febris que inspiraram poetas ao longo dos séculos. Mas a fragilidade de suas feições contrastava com as roupas negras e os impenetráveis óculos escuros.

- Ora, ora. A bela adormecida não vai acordar? – disse irônico, enquanto contornava a orla rendada do sutiã de Adélia com o dedo indicador.
- Não estou dormindo, Victor. – respondeu Adélia, sem se mover um milímetro sequer.
- Pois pra mim, pareceu que você estava dormindo. – queixou-se Victor, afastando-se subitamente. - Se fosse a polícia ou um dos Niners, estaríamos fodidos, porra. Você precisa manter os olhos abertos.
- Se fosse qualquer pessoa além de você, eu saberia. Meus ouvidos estavam bem atentos. Todos os meus sentidos são bem eficientes.
- Claro que são... Claro! – bufou, com uma expressão confusa de riso e raiva... Como foi o dia? 
- Poucos clientes. Livre-se dessa porcaria. Esse bagulho não presta, Victor. Só vendi pra viciada do primeiro andar. E tive que dar um desconto.
- Porra! – esbravejou Victor, jogando contra a parede um dos poucos vasinhos decorativos que restavam. - Não vamos conseguir pagar os Niners até o fim da semana!

Adélia se levantou como que na recuperação súbita de um coma. Enxugou o suor da testa e prendeu os longos cabelos negros em um coque alto.

- Se você não consertar esse ventilador, não sobreviveremos até lá de uma forma ou de outra.  – disse a moça, dirigindo-se à porta.
- Aonde você vai? – perguntou, com os braços abertos em fúria.
- Vou para casa. – respondeu Adélia, enquanto acendia um cigarro. – Não agüento mais esse calor. Já embalei tudo. Fiz seu serviço e o meu. Chame alguém pra ajudá-lo com as vendas... Se é que mais alguém vai querer essa porcaria batizada.

Victor colocou-se diante da porta, impedindo que a moça saísse.

- Pra casa?! Você nunca chamou aquela porcaria de casa. Mal pisa lá. Porque isso agora? Tá me enrolando, Adélia?! Tá querendo me fazer de otário?! – o rapaz vociferava bem próximo de seu rosto, impregnando tudo com o hálito impregnado de álcool, cocaína e cigarros.

Àquela altura, Adélia mal podia lembrar que um dia o amara. Que entregara a melhor parte de sua vida a um belo e amável Victor, e que em algum momento foram o mais feliz casal do mundo.

- Aqui está um inferno! Preciso sair deste buraco nem que seja por uma noite! – e sua voz era quase uma súplica.

A mão de Victor estalou ruidosamente na face direita da moça, que foi ao chão. De olhos enxutos, Adélia recolheu os óculos quebrados e se levantou em silêncio.

- Olha o que você me fez fazer! Olha só! – Victor iniciou uma marcha nervosa na sala, em um misto de arrependimento e raiva. – Porra... Por favor, me perdoe. Fique comigo, Adélia. Não sei mais o que fazer! Os Niners querem tirar minha pele. Sem você ao meu lado, eu não consigo. Por favor, fique!
Ele se reaproximou e prendeu o rosto da moça entre suas mãos e beijou seus lábios cerrados.
- Pare, Victor. Por favor, pare.

Adélia tentou se desvencilhar, mas as mãos do rapaz já percorriam o interior de sua calça jeans em apressada busca por resquícios de paixão. No minuto seguinte ele estava dentro dela, num coito incômodo, desajeitado, seco. Ela cedeu. Cansara de resistir.

Em tempos passados, ela teria chorado copiosamente pela agressão sofrida.

Um dia atrás, ela teria apontado uma arma para ele e diria que se a agredisse novamente, estouraria seus miolos.

Mas não naquela tarde quente e abafada de outubro.

Ao fim do ato, ela abotoou a calça e disse a Victor que ainda assim iria para casa.

- Que seja. Faça o que quiser. – respondeu sem olhá-la nos olhos. Victor sentia vergonha de si em seus breves momentos de lucidez.

Ao sair do prédio abafado, Adélia respirou aliviada. Os últimos raios de sol se retiravam e uma brisa gelada começava a soprar contra sua pele. Caminhou lentamente rumo à casa de seus pais, enquanto fumava seu último Marlboro. A fumaça saia de sua boca lentamente – não como o bafejar de um dragão furioso, mas como um sopro sutil a atravessar o diastema entre seus dentes.

Era agradável estar do lado de fora depois de semanas à fio trancafiada no apartamento velho e decadente que dividia com Victor. No início, ali fora uma espécie de refúgio. Uma miniatura de Éden, onde desfrutavam da presença sempre nua, um do outro. Eles se amaram ao extremo... A ponto de esquecer que o mundo era mundo. Entre tórridos beijos e profundos suspiros, uma dose ou outra, um quarto, uma aplicação. Entre conversas mais profundas que o oceano, um rasgo pra acelerar... Entre uma palavra torta, uma acusação, alguns miligramas disso ou daquilo para acalmar... Pra esquecer que o mundo continuava sendo mundo, com sua atraente porta escancarada para a perdição... Como uma boca gulosa que nunca se farta de tragar as almas dos que sonham...

- Que inferno! – Bufou, ao perceber que a sensação prazerosa que sentira há pouco estava aos poucos se esvaindo. A realidade a perseguia como um demônio opressor, que impunha as mãos sobre sua cabeça e turvava seus pensamentos. Lá estava ela, novamente perguntando a si mesma se de fato vivenciara as douradas lembranças as quais se apegava para continuar vivendo, ou se tudo não passara de uma ilusão... Um belo e saudoso simulacro criado por todas as substâncias que ingeriram juntos, e que, por algum motivo, não surtiam mais o efeito esperado. Não sabia mais o que pensar. As drogas eram melhores antigamente? Ou seu relacionamento estava na mais obscura fossa? Ou talvez sua vida inteira tenha se resumido a uma sequência de abismos, e abusos, derrotas e ilusões. Sentiu-se novamente a sufocar. As pernas falharam tombou de joelhos. Não havia lua, nem brisa, nem asfalto, casas, ou prédios, ou nada... Estava de volta ao seu deserto sem fim, mas não podia ver... Estava tão escuro... Sentia a língua enrolando no céu da boca e aos poucos ficava cada vez mais difícil de respirar.

Quando estava prestes a expirar, ouviu bem ao longe uma sequência de sons que era bem peculiar... Chaves girando numa fechadura, duas voltas e meia, seguida de um solavanco... Uma porta se abrindo e sinos tilintando... Como que há milhas de distância dali. Uma voz gritava seu nome e ela soube que era de Victor. Ela tentava respondê-lo e pedir-lhe ajuda, mas era em vão, pois seus gritos saiam como um engasgo feio e pastoso. Logo mais, sentiu seu corpo estremecer inteiro e em um relance pôde ver o rosto desesperado de seu amado bem próximo do seu. Ele parecia gritar a plenos pulmões, mas logo suas feições se tornaram um vulto...um borrão... e tudo escureceu novamente.

Quando o socorro chegou, deparou-se com duas emergências em vez de uma. Adélia jazia imóvel sobre o sofá de onde nunca saíra. No chão, o corpo de Victor ainda quente sobre uma poça do próprio sangue. Separaram-lhe as mãos e rabiscaram o laudo sem grande perícia: "overdose irreversível", "suicídio por arma de fogo". O relógio ainda marcava 11:11, e aqueles números finalmente fizeram sentido: era tarde demais.  




Um comentário:

  1. Minha amiga preciosa, que conto delicioso! Meu peito enche de orgulho e admiração quando leio suas postagens, que me proporcionam tanto prazer e inspiração. Tento ler devagar para que não acabe logo, hauhaua. Contemplei todos os detalhes minuciosos da estória. Ao ler me senti Adélia, vivenciei seus sentimentos, sua angústia e dor... Também a sensação de impotência quando ela sofreu o abuso, e respirei aliviada junto com ela, quando saiu do apartamento. Para mim, a parte mais dolorosa de ler não foi a morte de ambos, e sim as lembranças de Adélia, de quando julgava ser feliz com o Victor. Como isso dói... Como é perturbador lembrar de momentos radiantes com alguém que posteriormente se tornou uma pessoa que a sufocava, e que mais machucava do que a fazia feliz. Me surpreendi com o final </3. Muitas mulheres ao lerem este conto se sentirão como Adélia também. Obrigada pelo conto, Pan. Você é fantástica!

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