De
súbito, Valentina sentiu-se engasgar, como se uma enguia tentasse descer
garganta abaixo. Estava prestes a tocar
no manto da Morte, quando a Terrível Dama a empurrou para longe e deu um
terrível grito!
-
Malditaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! – urrou a Ceifadora, revelando sob o
manto negro sua pavorosa face de caveira.
Valentina
sentiu cada silaba daquele esconjuro penetrar em seu corpo e destruir seu
espírito. Naquele momento, soube que a essência mais preciosa a abandonara,
deixando seu interior desolado, vazio, escuro, frio. Seu corpo, antes templo de
todas as virtudes, tornou-se santuário em ruínas, de portas escancaradas para o
profano. A Morte se retirou em uma marcha decrépita, lançando mil sortilégios
ritmados pelo ranger sinistro de ossos. Valentina sentiu-se em grande pecado...
o mais desprezível de todos os seres. Quis clamar pelo divino nome, mas ao
fazê-lo sentiu a boca encher-se de sangue e a visão de todos os mártires passou
diante de si. Eles a encaravam com olhos inquisidores, enquanto espumavam de
dor. A moça lamentava, chorava e puxava
os próprios cabelos.
-
Perdoem-me! Perdoem-me! Fiz tudo por amor! Perdoem-me! - Gritava a plenos pulmões, olhando para o firmamento flamejante, que deveria ser o céu.
Quanto
mais clamava, mais horrendas as visões se tornavam. No meio de tamanha angústia
e sofrimento, Valentina notou a presença de um homem assustado que parecia
fugir do mundo inteiro. Ele escondia o rosto sofrido na orla de suas vestes
maltrapilhas; A moça segurou-lhe o braço antes que fugisse
de sua presença.
-
Por favor, me ajude! Não vá embora, senhor! Não me deixe aqui sem de nada saber! É este o inferno, ou será um lugar pior?!
- Inferno?! Também procuro o caminho para lá! Avise-me se encontrar! - retrucou o homem, esquivando-se nas trevas.
- Por favor, não se vá! Ajude-me! - Valentina colocou-se na frente o homem atordoado, impedindo que seguisse seu caminho.
Ao encará-la melhor, os olhos dele se acenderam.
- Vejo que também és maldita! Tu tens o sinal...Tu também tens o sinal! – Ele a
analisava num misto de esperança e loucura, enquanto tamborilava com os dedos na
própria testa. – Tu és maldita, assim como eu!
Valentina
procurou em seu próprio corpo pelo sinal de que o homem falara, e nada
compreendeu.
- Não compreendo! Qual a sua graça, senhor?!
-
Filho Mau... Vagabundo... Maldito... Odiado dos Homens... Fratricida... Filho
desviado de Deus... Maldito... Caim... Me chamo Caim... Aquele que vaga nas
sombras... Maldito – o homem cuspia injúrias contra si, sem que pudesse
controlar a língua ou os tiques.
Valentina
foi ao chão ao reconhecer a abominável identidade daquele homem. Aquele "personagem" assombrara
seu imaginário infantil desde que a introduziram nos preceitos da crença. E lá
estava ela, no mesmo lado da balança em que o primeiro monstro da humanidade.
-
Se pequei foi por amor! Deus terá misericórdia de mim! Não tirei vida alguma,
além da minha! – gritou Valentina aos prantos, na expectativa de que aquele
homem fosse embora e de alguma forma levasse sua iniqüidade – Eu não matei
ninguém!
-
Ainda não derramaste sangue, mas logo verás que nem o sangue do mundo inteiro saciará
sua fome! Maldita! Tu também és maldita!
De
repente, Valentina se viu a golpear o homem, e quanto mais o feria, mais ele a
amaldiçoava. Ela o esmurrava na face com os punhos fechados, e cortes se abriam
em todos os lugares. Tanto lhe bateu, que o rosto virou uma massa inchada e
irreconhecível. O sangue jorrava abundante pelos cortes, inundando-lhe os olhos
e a boca. O homem apenas ria, enquanto o líquido vermelho espumava em sua boca,
tingindo seus dentes podres de vivo escarlate.
Num
lampejo de lucidez, Valentina soube que perderia o controle de si. No instante
seguinte, já não podia conter sua raiva e aquela força descomunal que
adquirira. Não podia mais suportar aquela fome insana que crescia em cada célula de
seu corpo. A vermelhidão do sangue a convidava como o mais nobre e excelente
vinho. A carne ferida a atraia como o mais suculento manjar. Sem ao menos
hesitar, devorou a face inteira do homem, que “morreu” sorrindo.
Ao
sentir-se saciada, vislumbrou o cenário visceral ao seu redor. Pedaços de carne
humana, couro cabeludo, dentes e ossos menores espalhados por toda parte,
inclusive sobre si. Tocou o próprio rosto e sentiu que adquirira as feições de
uma besta demoníaca. Os caninos pontiagudos rompiam-lhe a gengiva causando
imensa dor. Olhou para as próprias mãos e vestes, cobertas com o sangue de sua
iniquidade. Olhou para dentro de si, e soube que jamais seria a mesma novamente.
O mundo girou, a vista se anuviou e ela desfaleceu.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue agonia clamar por Deus e não ter resposta... Receber visões horrendas no lugar de um perdão acolhedor. Já senti esse tipo de tortura em pesadelos; a sorte é quando acordamos e percebemos que aquela situação não foi real. Fiquei admirada com a presença de Caim no história! Um ser pessimista e desprezível... Pobre Valentina!
ResponderExcluirna*
ResponderExcluirUltimamente ando pensando bastante no que pode acontecer comigo após minha morte. Quanto mais penso nisso, mais eu sinto o pavor do que realmente poderá acontecer. E como eu irei reagir quando meus pais partirem? E se eu enlouquecer? A visão que tenho sobre Deus me conforta na maior parte do tempo, mas os evangélicos insistem em me alertar que Deus preza a justiça acima de sua bondade... E é aí que toda minha esperança evapora e eu me vejo no inferno. É complicado tentar viver normalmente enquanto essas aflições me assolam.
ResponderExcluirÉ maravilhoso ler todas as suas histórias, minha irmã! Sonhei com você distante... Abraço forte!
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