Valentina
despertou na floresta com a impressão de ouvir asas batendo aos seus ouvidos.
Estava certa de que era um morcego, pois podia ouvir o seu trissar estridente. Espantou a criatura com as mãos e levantou-se assustada.
Seu vestido estava imundo e os longos cabelos repletos de folhas secas. Não
sabia por quanto tempo ou dias estivera na mata. Estava completamente confusa,
mas constatou que o sol se poria em breve a julgar pelas nuances de luz que
cortavam a folhagem. Pouco a pouco começou a recordar as revelações que Arthur fizera,
e seu rosto foi se contorcendo até explodir em copioso pranto. Estava certa de que aquela dor dilaceraria
seu peito e todo seu corpo. Era tão intensa que podia senti-la fisicamente...
Uma dor que a fez gritar até sentir que os pulmões explodiriam e as cordas
vocais rasgariam. Um pranto tão doído que tossia e engasgava como que vítima do
mais nocivo veneno: o rancor, que se espalhava veloz por cada uma de suas
veias. Naquele momento, as preciosas virtudes abandonaram o casto coração de
Valentina, assim como o sol, que se retirou e deu lugar a uma treva profunda...
E tão escuro ficou que nada mais podia ver.
Cega
de ódio e destruída por dentro, seguiu pela mata guiada por uma intuição
obscura e desconhecida. Como que por encanto, o véu negro da escuridão se abriu
e ela se viu novamente no vilarejo. Tudo estava envolto daquela estranha
neblina que vinha se manifestando nos últimos tempos e mal podia enxergar um
metro à sua frente. Valentina seguiu
errante pelo cenário pálido e fantasmagórico, até perceber que estava na ponte.
O vento soprava gélido, balançando as candeias de um lado para outro. A chama das lamparinas tremulava num tom
sobrenatural de azul, como pequenas fadas em combustão a agonizar. O crepitar
sinistro era como gemidos de dor, que se propagavam no vento em funesta
sinfonia. Pouco a frente, foi se formando a silhueta sombria de um cavalheiro,
que se tornava cada vez mais familiar. Ele se virou, e seus dentes salientes
pareceram brilhar quando sorriu. Ela conhecia bem aquele riso torto e
maquiavélico. Era Nikolai, que (como sempre) parecia esperá-la.
Ele
abriu os braços e, por algum motivo inexplicável, Valentina sentiu-se impelida
a abrigar-se em seus braços. Nikolai tomou-a por inteiro dentro de sua capa. Seu
peito era rígido como mármore e frio como uma sepultura. Ela não sentiu
conforto algum, mas sim o pavor inerte de um animal indefeso nas garras de uma
fera predadora. No entanto, contrariando todos os seus instintos, ela apegou-se
ainda mais àquela sensação, mergulhando profundamente naquele abraço.
-Se
realmente me amas, mate-me, por favor! Eu não posso viver neste mundo nefasto
sabendo o que sei! – disse entre lágrimas e soluços.
-
Então queres mesmo morrer?! – Nikolai perguntou quase sorrindo, enquanto
afagava os cabelos de Valentina.
-
Com toda minha alma, sim! É o que desejo. Prometo rogar aos céus que não lhe
imputem minha morte por crime!
-
Querida, não te perturbes com este compromisso. Estas tolices de céu ou inferno
há muito não turvam meu espírito e nem regram meus atos. Não te ofendas, mas
sequer penso em tais coisas. Todavia, sou-te grato, pois bom é o teu intento.
-
Se fôlego tivesse para viver mais um dia, juro que me empenharia em tua
salvação. Chamar-te-ia amigo, e destituiria teus pensamentos de tais heresias.
-
A única salvação que preciso é do inferno de não ter você... Em vez de palavras
santas, converta teu precioso fôlego em beijos e eu me converterei a ti com
crença jamais vista.
-
Por favor, não me galanteie. Não pague minhas puras palavras com estas outras
cheias de pecado travestido de amor.
-
Oras! Julgava-me livre, mas vejo que já me converti. Tu mandas, e eu
servilmente calo.
-
Então, meu amigo e servo, mate-me. De algum lugar tua santa irá interceder por
tua alma. Peço-te apenas que conserves minha beleza... E que sejas rápido.
-
Depois de morta, estarás mais bela que nunca. Mas confesso que não posso
imaginar maior beleza que esta que meus olhos vêem.
-
Usarás arma de fogo ou coisa assim?
-
Admiro tua bravura, mas será mais fácil se não souber. Feche os olhos, sim?
Valentina
olhou em volta, em breve despedida. Soube que sofreria por suas irmãs, em
especial a caçula. Por seu adorado gato Leopoldus também. Mas não poderia continuar
entre os poucos que amava e ao mesmo tempo viver sob o teto dos inimigos de sua
alma.
Obedeceu
a instrução do cavalheiro e deixou-se guiar às cegas até o parapeito da ponte.
Estremeceu de frio e medo, mas desta vez não seria covarde. Abraçaria a Morte,
qualquer que fosse sua aparência... E estando de olhos fechados, era como se o
Nikolai fosse a própria Morte...
O
vento pareceu adquirir consistência, deslizando em espirais por seu pescoço,
braços, tornozelos, invadindo suas vestes. Uma atmosfera hostil a envolveu por
inteiro, e ela se sentia como um animal acuado, que pressente desgraças antes
que aconteçam. Era como se Nikolai a estivesse rodeando, como um lobo em volta
da presa. E com ele, uma matilha inteira
formada de ar. A sensação era de que a ameaça vinha de todos os lados e ela não
ousou abrir os olhos. Não conseguia. Estava petrificada e seu corpo não obedecia
aos instintos de sobrevivência.
Valentina
sentiu o corpo inteiro de Nikolai contra suas costas. Cada músculo, cada
membro, cada contorno, numa proximidade exagerada e íntima. As mãos lascivas
envolveram sua cintura e prenderam-na com volúpia. Ele pôs a palma sobre sua têmpora, e sem encontrar
qualquer resistência, moveu-lhe o rosto, deixando o pescoço da moça
completamente exposto. De olhos fechados, ela sentiu o toque do nariz grego
sobre sua pele a absorver o seu cheiro, os lábios frios a beijar e depois
lamber sua garganta. Sentiu-se ultrajada, vulnerável, impotente. Mas ao mesmo
tempo, como que possuída por um encantamento imundo, desejou que aquilo se
tornasse mais intenso, que ele enterrasse o rosto de vez em seu pescoço, em
seus cabelos e que lhe arrancasse a carne.
E assim o fez. Ele a mordera! Aquele homem perverso e libertino cravara
os dentes em seu pescoço com a violência de uma fera. Após certa resistência, a
pele rompeu-se sob os caninos pontiagudos e mortais de Nikolai. O sangue
abandonava seu corpo em jatos na intensidade imposta por aquela boca vil, que
sugava ininterruptamente. Era como se seu corpo não mais existisse, e seus
membros fossem completamente feitos de dor.
O único som que conseguia emitir era um abafado arranhar de cordas
vocais, e foi emudecendo na medida em que enfraquecia. Aos poucos a dor cedia,
e sentia-se leve como uma pluma. Seu corpo estava arqueado de uma forma que
causaria desconforto a qualquer um que estivesse lúcido. No entanto, ela sequer
sabia em que posição estava e perdera completamente o senso de direção.
Todavia, sabia que as mãos de Nikolai ainda a apoiavam. O local onde ele a
mordera estava úmido, e presumiu que fosse de saliva ou sangue. Sentia o
estalar dos lábios dele em seu pescoço. Ele agora a beijava, como se não fosse
mais a fera de tempos antes.
Seus
últimos pensamentos foram de arrependimento, por permitir que aqueles lábios
estranhos a tocassem. Sentiu como se chorasse, e um terrível frio a invadiu.
Por fim, seu corpo se debateu. Eram os espasmos da Morte. Ela estendia as mãos
esqueléticas em sua direção, e embora não pudesse ver seu rosto descarnado,
sentiu-se amparada pela senhora sombria. Valentina abraçou a Morte e sentiu um
inesperado conforto ao ser envolvida por seu manto.
Leitura completamente prazerosa... Meu presente de sábado! rs
ResponderExcluirSenti uma certa ternura por Nikolai pela disposição dele em atender os pedidos de Valentina. É encantador ver um homem apaixonado ceder às vontades de sua amada. Mas não sinto que ele seja tolo, ele me pareceu estar no controle de toda a situação. E essa descrição da morte de Valentina... Putz... Perdi o fôlego! Tu escreve tão meticulosamente cada detalhe, de modo que, além de conseguir visualizar perfeitamente toda a cena, me permite sentir que estou ali. Como se eu fosse a própria personagem!