- Pai, perdoa a alma dos suicidas. Tu conheces a natureza humana. Tu nos criaste, sabes de nossas fraquezas. O suicídio é o maior grito de sofrimento de um ser. - pedi, completamente consternada pela morte de Chester Bennington e de tantos outros desistentes com os quais me identificava.
- Filha, muitos deles jamais pediram a minha ajuda. Muitos deles me negaram e blasfemaram.
- Somos ignorantes, Pai. Muitas vezes agimos sem saber, sem temer, sem acreditar. Parte de tua criação não é capaz de ver o invisível.
- Filha, por acaso conheces o íntimo de cada ser? Lembra-te das vezes que amaldiçoaste teus irmãos, afirmando que todos (sem exceção) tinham irremediável peçonha dentro de si? Quantas vezes choraste amargamente ao testemunhar atos vis e cruéis por eles cometidos? Quantas vezes pedistes a mim que os castigasse até a quarta geração?
Envergonhei-me, sem me arrepender. Todos tinham merecido aqueles sortilégios.
- Peço então que perdoe apenas os bons. Sei que a justiça humana não passa de "trapo de imundície". Mas tu sabes, Pai. Tu conheces o coração de todos. Sabes diferenciar os que não suportaram coexistir com a própria imundície daqueles que foram vítimas do peso esmagador do mundo.
- E qual medida devo usar para julgar os homens? A tua?
Embora considerasse minha "balança" próximo de justa, calei-me diante daquela pergunta retórica. Acredito que Deus já tenha todas as respostas. E qualquer argumento que eu usasse, soaria muito prepotente. As escrituras condenam os suicidas, mas acima de todas as coisas está a Justiça de Deus. Acredito que Ele possa perdoar qualquer transgressão, mas este é um mistério que não me será revelado enquanto meus pulmões viciados em oxigênio continuarem buscando o ar.
Enquanto isso, continuarei comovida por alguns. O suicídio é um ato de extrema coragem. É a negação de milhares de possibilidades, por falta de fé no futuro, pela ausência de qualquer relevância no presente. É o fundo do poço, do qual muitos falam, mas poucos chegaram. É cair num lugar de escuridão total. É tatear em volta e só encontrar um círculo infinito de pedras frias, indissolúveis e rígidas. É pisar sobre um chão lamacento repleto de vermes e anelídeos e não conseguir tirar os pés do chão, num misto de asco e medo.
"Impressionada sem cessar com a morte" - assim me descrevo. Ela me intriga desde cedo. Lembro-me de analisar o corpo decomposto de um gato morto quando era pequena. Quando vim a entender o que aquilo significada, meu espírito se abateu. Uma década e meia depois, a morte de animais e algumas pessoas ainda me comovia muito. No entanto, passei a pensar na minha própria morte como algo banal. Pensava sobre como eu poderia perfeitamente explodir uma bomba de hidrogênio que dizimasse toda a humanidade, em nome de um bem maior. Para que toda a maldade, todo o sofrimento, desigualdades a dor fossem pelos ares. Para rachar a terra mandar seu conteúdo podre para o ralo do universo, como um ovo estragado que chocaria serpentes.
Hoje penso sobre como eu daria minha vida pela pessoa que mais amo. Que prefiro ir antes a ter que presenciar sua partida. De certa forma, você só se apega à vida quando sente que ela não te pertence mais. Quando um outro ser depende de você. Quando sabe que sua partida antecipada pode arruinar a existência de alguém que você estima mais que tudo. Mas a vida em si, de nada vale, quando é a única coisa que se tem.
segunda-feira, 24 de julho de 2017
segunda-feira, 17 de julho de 2017
Escravos das próprias conquistas, parte 1
"Certo agricultor me diz: "Não se pode viver só à base de alimentos vegetais porque não fornecem matéria-prima para os ossos", e de acordo com isso dedica religiosamente parte do dia a suprir essa deficiência em seu sistema e enquanto fala, vai caminhando o tempo todo atrás de bois que, com ossos feitos de vegetais, arrastam às sacudidelas, ele e o arado pesadão, vencendo todos os
obstáculos. Há coisas verdadeiramente necessárias à vida em algumas classes sociais mais desassistidas e enfermas, enquanto que em outras são supérfluas e em terceiras, desconhecidas.
(...)
Penso que podemos, sem correr risco, ser bem mais confiantes, abrindo mão de tanta atenção conosco e aplicando-a alhures. A natureza está bem ajustada, quer à nossa fraqueza, quer à nossa força. A incessante ansiedade e tensão de alguns é quase uma forma incurável de doença. Temos a tendência de exagerar a importância de qualquer trabalho, contudo quanto deixamos de fazer, ou o que aconteceria se adoecêssemos? Como nos fiscalizamos, determinados a não viver pela fé sempre que podemos evitá-la! O dia inteirinho de prontidão, quando chega a noite rezamos as orações sem ânimo e nos entregamos a dúvidas. Somos completa e sinceramente forçados a viver reverenciando nossa vida e negando a possibilidade de modificação. Dizemos ser esta a única maneira, mas há tantas quantos os raios que podem ser desenhados a partir de um centro.
(...)
Reis e rainhas que usam um traje apenas uma vez, feito sob medida pelo alfaiate ou costureiro de Sua
Majestade, desconhecem o conforto de continuar vestindo uma roupa que assenta bem, e nessa condição se equiparam a cabides de madeira em que se penduram roupas limpas. Homem nenhum
caiu no meu conceito por ter um remendo na roupa, mesmo assim tenho certeza de que comumente há maior preocupação em estar na moda, com roupas limpas e sem remendos do que em ter a consciência tranqüila. Até que ponto os homens manteriam a sua posição social caso fossem despidos, eis uma questão interessante. Acaso poderíeis, numa situação dessas, apontar com
segurança num grupo de pessoas civilizadas, quais as que pertencem à classe privilegiada?
(...)
Em tempos idos, quando ganhar a vida de um modo honesto, com disponibilidade para cumprir projetos meus, era assunto que me atormentava ainda mais que agora, porque lamentavelmente
tornei-me um tanto insensível, costumava reparar numa grande caixa de madeira, cerca de dois metros de comprimento por um de largura, que ficava perto da estrada de ferro e servia como depósito para as ferramentas dos operários durante a noite; veio-me então a idéia de que qualquer homem em dificuldade financeira poderia obtê-la por um dólar e depois de aí perfurar alguns
orifícios para ventilação, instalar-se nela quando chovesse ou viesse a noite, e uma vez a tampa trancada, gozar enfim de liberdade para amar ou espairecer o espírito. Tal solução não me pareceu a pior, nem de modo algum uma alternativa desprezível. A pessoa poderia deitar-se e levantar-se a hora que bem entendesse, sair de casa sem proprietário no seu encalço exigindo-lhe o aluguel. Muitos
homens que não morreriam de frio numa caixa dessas se atormentam até a hora da morte para pagar o aluguel de outra apenas maior e mais luxuosa
Entre os selvagens toda família possui um abrigo da melhor qualidade, suficiente para as necessidades mais ordinárias e simples. Contudo suponho ser razoável ao afirmar que, embora os pássaros tenham seus ninhos, as raposas suas tocas e os selvagens suas cabanas, na sociedade civilizada moderna, não mais que metade das famílias dispõe de moradia própria. Nas grandes cidades e nas capitais, onde predomina a civilização, a percentagem dos que possuem casa própria é mínima. A esmagadora maioria paga por esse agasalho exterior, indispensável durante o verão e o inverno, uma taxa anual que daria para comprar um povoado de cabanas indígenas e que apenas serve para manter pobres seus moradores a vida inteira. Não insistirei sobre a desvantagem que consiste em alugar em vez de adquirir, mas é evidente que o índio tem casa própria porque lhe custa pouco,
enquanto que o civilizado geralmente aluga porque não tem condições financeiras seja para comprá-la, seja para a longo prazo alugar coisa melhor. Alguém pode retrucar que, com o simples pagamento de uma taxa, o homem civilizado pobre garante uma moradia que é um palácio comparada à dos índios. Um aluguel anual de vinte e cinco a cem dólares (são estes os preços no país) confere ao inquilino o direito de beneficiar-se do progresso de séculos: cômodos espaçosos, paredes pintadas ou revestidas de papel, lareira Rumford, estuque, persianas, encanamento de cobre, fechadura com mola, adega ampla e muitas outras novidades. Entretanto como se explica que o homem civilizado usufruindo todas essas coisas seja tido por pobre, enquanto que o selvagem, à falta de todas elas, seja rico em sua condição? Se se afirma que a civilização constitui de fato um progresso na condição
humana — e eu em particular não discordo disso, embora somente o sábio aproveite-lhe as vantagens — deve-se demonstrar que a civilização produziu moradias melhores sem torná-las mais dispendiosas. Não resta dúvida que se pretendeu nos favorecer ao se institucionalizar a vida do homem civilizado, fazendo com que a do indivíduo seja em grande medida absorvida, tendo em vista a preservação e o aperfeiçoamento da raça. Desejo, porém, mostrar o sacrifício que atualmente essa orientação acarreta e sugerir a possibilidade de uma vida que reúna todas as vantagens sem a
contrapartida das desvantagens.
O agricultor tenta resolver o problema da subsistência através de uma fórmula
mais complicada que o próprio problema. Com habilidade consumada armou o
laço para alcançar conforto e independência, mas ao voltar-se viu-se de pés
atados na própria armadilha. Eis a razão por que é pobre; e por motivos
semelhantes é que todos nós, embora cercados de luxo, somos pobres em relação
a mil confortos contraditórios...
E quando afinal o agricultor consegue sua casa, pode por causa dela estar mais
pobre em vez de mais rico, e a casa ter se tornado a dona dele."
E dado que os objetivos do homem civilizado não valem mais que os do selvagem, e que emprega a maior parte da sua vida na simples obtenção de necessidades grosseiras e confortos, por que há de ter moradia melhor que a do selvagem?
Walden ou A Vida nos Bosques (Henry David Thoreau)
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