segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Sinceramente

Era uma boa pessoa. Uma estranha na Terra. Um coração rejeitado pelo organismo “mundo”.

Foi aí que me disseram:

“Aqui não há lugar para quem é bom. Não há compreensão. Você não passa de uma engrenagem defeituosa que faz a máquina do progresso girar no sentido contrário. Por aqui não há tempo a perder, não há casos a considerar. A vida dos mais fracos é descartável, até mesmo um estorvo. Compromete os lucros, atrofia o sistema. Gera estatísticas negativas, as cifras caem. Vamos. Continue andando, siga em frente. Não podemos parar.”

“Mas para onde devo caminhar? O que há no fim da estrada?”

“Não se sabe ao certo, mas há tesouros a acumular, imagens a construir. Lave o rosto e cubra o que houver de imperfeito. Enxugue as lágrimas, ande.”

“Eu não posso evitar. Meu coração se comove.”

“Trate de conseguir.”

“E se eu não conseguir? Se eu não quiser mudar? E se eu tiver convicção de que estou certa? De que toda vida importa? Se eu não conseguir dormir? E se meu travesseiro macio se transformar num formigueiro mortal e devorar minha consciência? Se eu nunca mais tiver paz?”

“Nesses tempos, a paz é uma foto com legenda. Já criou seu conceito? Já encontrou seu ângulo perfeito? No fim, tudo é sobre o que os outros acreditam. Feito isso, a ilusão é perfeita. O resto se engole, passa-se por cima, joga-se para debaixo do tapete ou numa lixeira qualquer”.


“Não sei viver desta forma. Não sei viver de outra forma. Não sei me desfazer do que tenho dentro de mim sem que eu me vá. Assumo agora que faço parte da escória. Da insignificância. Do nada. Eu não sou nada, nunca fui nem hei de ser coisa alguma. EU NÃO SOU NADA, e o que penso ter me escapa entre os dedos. Sou o que se vomita, o que se passa por cima, o que se joga debaixo do tapete ou apodrece em uma lixeira qualquer. Eu sou a vira-latas parida com o olho furado. Sou aquela que aborta no meio da rua, sem panos limpos e água morna. Não há um lar ou a porta aberta de um quarto para que eu entre. Eu sou o que recebe toda a chuva na fronte. A que ficou de fora da arca no dilúvio. Sou aquela que passa frio, que morre de fome. Sou a que arqueja em na calçada por entre pés e passos desatentos. Na ausência de outras almas, sofro. Eu sinto toda a dor dentro de mim. Sinto, mas não é meu desejo continuar. Eu não quero mais continuar.”

"Ora. Esperava salvar o mundo todo?!"

"Se PUDESSE, eu FARIA."

"Mas tu não podes."

"Eu sei. Em meus sonhos, o sistema de fato existe. Mas nos meus sonhos ele não é apenas essa histeria humana de somas imaginárias, dígitos e algorítimos. Ele também é um sistema elétrico movido a energia, fios, conectores. E no meu sonho, cada pessoa está ligada à uma fonte de energia. E no meu sonho, bastaria puxar o meu fio da tomada. E eu deixaria de existir."

"Como disseste, são sonhos, devaneios."

"Assim como as leis que movimentam o mundo e que não levam ninguém a lugar algum. Assim como o dinheiro, que não passa de papel pintado. Assim como as horas, os dias, os anos, os títulos, os nomes. São invenções humanas, algemas, amarras. Estou cansada."

"Ninguém te obriga a estar aqui."

"Se eu me for, o mundo continuará a existir."

"Tu és complicada."

"Sim. Sou uma bomba relógio defeituosa. Uma granada com o pino emperrado."








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