quarta-feira, 29 de julho de 2015

Início da cura

Que as mãos do futuro respeitem a pureza deste momento.

Uma aura de repente me ilumina.
Vejo-me nua no espelho. A curvatura das costas, o relevo do seio. A cor nácar reluz com o feixe de luz que me ilumina o busto. Mãos invisíveis me apertam a nuca. Abro o corpo para o vento e para a misteriosa energia telúrica. Refletida no grande cristal, pareço uma donzela antiga de cabelos desgrenhados, mas bem dispostos. Sou bela como Vênus entre espumas. Ilegítima, mas real. Envolvo-me em um abraço quente e roço a face nos ombros nus. Delicio-me com o veludo da pele enquanto meus longos cabelos acariciam-me as costas. Deito-me para apreciar o toque da colcha de seda ornamentada. É gostoso, mas agora meus lábios estão secos.
Levanto-me e descubro o misterioso ângulo dos joelhos. Anoto para não esquecer, mas em enigma.
Sei que devo lembrar de mudar algumas coisas de lugar. Coisas e sentimentos. Também preciso buscar meu celular no jardim de inverno... Antes a chuva venha. Mas a distância agora parece maior, Achei prudente calçar os sapatos.
“Vou para a terra e depois volto pra casa. Subo um degrau, tiro os sapatos na primeira cerâmica e sigo descalça pelo resto da casa.” – pensei. Ou terei murmurado? Era um mecanismo lógico, mas idiota ao ser pensado. As coisas estavam demasiadamente confusas, então resolvi apenas observar. Peguei meu celular e dirigi à cozinha.
No chão da cozinha, um girino, anfíbio morto. Parecia um mini-crocodilo, e às vezes um mini- homem. E às vezes um mini-homem... feito de carne mesmo.
O gato gosta.
O homem-girino é mais que isso. É um mini-homem girino com aparência de crocodilo. Na verdade ele é ainda mais. É uma porta de armário entreaberta.
Não. Não há nada por trás do que digo. Não há nada subliminar. É apenas o retrato do que imagino... Do que é peculiar... Por trás dos olhos vermelhos.
Abandono o claustro de paredes, telhas e móbília. Nas ruas, me sinto só. Embora o chão seja de pedras, e as muitas árvores refresquem a noite, a sensação é de estar naquelas cidades de gibis. Ao fechar os olhos, vejo silhuetas negras de prédios, desenhadas em um céu púrpuro... São como grandes lápides, de tudo que era vivo e o homem dizimou para erguer suas civilizações. A criminalidade está em alta... E sonhamos com heróis que nos salvem do mal nos becos escuros da cidade... Ignoramos as advertências e o instinto de auto-preservação para sermos salvos. Expomos-nos aos mais terríveis riscos para sermos resgatados em seguida. E quando nos falta auxílio, amaldiçoamos a existência e a criação. Nos entregamos à descrença, passamos a confiar em nossa própria justiça e força. Isso não nos torna menos frágeis.
Tudo aqui são pessoas que querem falar coisas. E todos têm a mesma voz, a mesma entonação, o mesmo jeito. E eu, que vivi no máximo três vezes, penso saber das coisas. O mundo e as relações interpessoais são deveras enfadonhos. Suspiro e encerro tais reflexões, que de certo não levam a nada.
Continuo minha peregrinação sensorial.
Sento e observo a natureza em minha volta. Um de meus gatos vem até mim, de uma forma diferente. Ele parece ter consciência humana, e seu olhar me faz mil acusações. Com a boca entreaberta, começou a roçar sua cabeça em mim, num ritmo nervoso. Isso me fez sentir dor e medo. O meu lado homem quis mostrar fogo. O meu lado animal quis correr. No entanto, resolvi me afastar e ceder lugar ao gato. Respeitamo-nos, como seres domesticados que somos. Toda a situação se desfez.
Pisco os olhos no ritmo do grilo. Ouço passos e o tic-tac de um relógio. Mas onde estou não se contam as horas. Apenas padrões. Quando a mágica acabar, saberei que se passaram duas horas. Poderiam ser seis se assim quisesse. Mas dessa forma amanheceria sem que eu durma.
Hoje o vento está bom para incenso e eu escolho sono. Gostaria de não acordar, por alguns dias. Ainda assim, ajusto o despertador para que toque na hora certa...
"Que me desperte na hora de acordar. Que só descarregue depois..."

Hoje, as mãos do futuro exaltam a tão preciosa cura para as penosas vigílias do passado.

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Parte de mim era dom, outra era tristeza. Por algum tempo, apeguei-me à melancolia como principal fonte de inspiração. Como se a própria tristeza fosse meu dom. Só eu sei como meus últimos escritos foram sentidos e refletiam meu estado real de espírito... um estilo de vida doentio. Ao fim do ano passado, resolvi destituir-me do luto, ainda que isso refletisse em minha habilidade para escrever ou implicasse no fim dela. Embora soubesse que jamais seria uma pessoa radiante, abracei a possibilidade de ser diferente. De sofrer menos. Passei um bom tempo sem escrever coisa alguma, com exceção de listas de supermercado e pequenas cartas de amor.
No entanto, sob a poderosa influência  de Marte, acordei incrivelmente disposta a escrever. Resolvi dar uma olhada em meus arquivos e achei tudo muito bom. Precisando de correções, é claro.
Mas enfim... Estou editando o cru e postando o que antes era impublicável...
Sinto-me especial. O dom, que é a parte de mim que mais gosto, continua entranhado aqui dentro.
Voltei a sonhar, a ter minhas experiências astrais. Minha sensibilidade está a flor da pele.
Confesso que meus melhores contos foram escritos no auge de minha tristeza... O "Swarovski e Sangue"... "Mágica em pó"...Estudos comprovam a influência positiva da melancolia sobre processos criativos... No entanto, eu também escrevi coisas legais fora da lânguida redoma em que estava aprisionada. "Glay O'Hanne Lindsay" é a prova disso.
Sempre gostarei de Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo e seus poemas malditos.
Não tenho pretensão alguma de escrever textos ridículos de auto-ajuda ou motivação.
Minha atração pelo oculto e místico dificilmente deixará de existir.
Permanecerei escrevendo com a alma, e isso sempre refletirá minha essência.

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