sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Os Escravos do Pau D'Arco

Era um fim de tarde excepcionalmente triste e escuro. A Lua negara-se a assumir seu posto e o dia de despedia sem deixar substituto. Os pássaros já haviam se recolhido e um silêncio de morte reinava em minha rua. Meus gatos encorujados seguiam-me com seus olhos grandes. Cumprimentei-os, mas não ousaram deixar a laje e miar em coro, como de costume.
Eu, humana, animal inferior, deficiente nos mais importantes instintos, ignorei os sinais da natureza e sai de casa debaixo do céu agourento. Ao entrar no carro tive de acender a luz para localizar alguns objetos. Quando ergui a vista, notei que o vigia vinha em minha direção em uma marcha rápida, inapropriada para o seu corpo idoso. Chegou esbaforido e entrou no veículo sem pedir permissão.
Assustada, perguntei ao velho o que se passava e ele arfou:
- Cuidado com os escravos do Pau D’Arco! – e voltou o olhar assustado para a esquina.
Aquelas palavras me causaram arrepios. Senti, de imediato, que elas designavam algo mau, sombrio. Olhei na direção que ele apontou e vi que três negrinhos vinham rumo ao carro. Eles pareciam escravos norte-americanos foragidos, e seus trajes beiravam a elegância. As duas moças, uma magra e alta, a outra baixa e rechonchuda, trajavam longos vestidos brancos e sunbonnets. Entre as duas estava um negrinho franzino, que parecia ser o mais jovem e tinha menor estatura. Ele vestia uma blusa branca de algodão por dentro da calça grafite, presa por suspensórios.
Era pavoroso, pois eles vinham em nossa direção sem que os pés realizassem o mecanismo do caminhar. Eles vinham flutuando, como espectros, em ritmo constante. Tudo se tornava ainda mais bizarro, pois o negrinho trazia no rosto uma expressão maquiavélica. Esboçava um riso desconfortavelmente exagerado, e por pouco, sua arcada dentária cerrada não unia as orelhas salientes. Ele deslizava a cabeça de um lado para outro, como se procurasse algo com aqueles olhos terrivelmente arregalados. Trazia as mãos magras na altura do peito, e seus dedos se moviam de um jeito maquiavélico, como tramasse mil e um ardis. As moças nada falavam, e em seus lábios cerrados, um riso petrificado, que por nada se desfazia.
Aquilo tudo era tão estranho, que sequer tivemos o ímpeto de fugir. Num piscar de olhos, os três estavam ao meu lado, separados apenas pelo vidro entreaberto. Embora estivesse com medo, senti um súbito desejo de ajudá-los. O negrinho de rosto endiabrado me ofereceu uma pequena cesta, coberta por um paninho xadrez. Subjugada pelo medo, estendi as mãos para recebê-la, como se nada pudesse fazer além de me deixar conduzir. Meu êxtase de submissão foi interrompido pelo vigia, que com um safanão, impediu que minhas mãos tocassem a cesta e os pães que dentro estavam.
- Não toque em nada! Não aceite nada deles! – repreendeu-me.
Naquele momento, foi como se eu despertasse de um encantamento. Como se tivesse imediata clarividência acerca dos intentos diabólicos dos escravos. Encolhi-me de pavor.
O negrinho viu, no tremor involuntário de minhas pupilas, que eu havia descoberto sua identidade demoníaca. Ele espumou de ódio e gritou como uma criança contrariada. Possesso de fúria, movia a cabeça nervosamente e seus olhos irados ameaçavam saltar das órbitas. Começou a falar em dialetos estranhos e eu sabia que aquelas palavras eram cheias de maldições. Comecei a clamar a Deus e pedir que me livrasse de tais sortilégios, mas sua malevolência me oprimia, sufocava minha voz. Eu afundava cada vez mais no banco do carro, sem que pudesse me mover. Meus membros completamente paralisados, não obedeciam minhas intenções de fuga. Estava presa em meu corpo inválido, como se mil demônios me neutralizassem com seus grilhões infernais.
Eu lutava contra aquela energia nefasta, suplicando a Deus em espírito, já que não podia falar. Em meu íntimo, sabia que no último momento, quando clamasse com toda minha fé, Ele me libertaria. Já me livrara tantas outras vezes, embora eu sempre enveredasse por caminhos tortuosos e me afastasse de Sua Graça. Embora eu tivesse negado minha fé em fevereiro de 2013.
E assim aconteceu. No auge de meu desespero e asfixia, o divino nome me resgatou das trevas opressoras.
 “Cuidado com os escravos do Pau D’arco”.  Compreendi a profecia por trás daquelas palavras. Meditei sobre ela incansáveis vezes. Ainda assim, deixei-me ludibriar pela beleza do ipê que florescia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...