No fim daquela tarde cinza ela ouviu o chamado. Abandonou seu
lar sem se despedir dos que ficaram. Não escreveu sequer uma nota. Lá deixou
tudo que tinha: carro, celular, o extrato de contas a pagar. Deixou para trás sua
caixa de recordações e até a mais íntima veste. Seguiu nua pela rodovia
principal da cidade. Não demorou até que um coro de buzinas explodisse e uma
dezena de carros parasse no acostamento da pista. Ela não parou. Continuou a
caminhar em sua ausência de caminhos, completamente absorta aos flashs e gracejos
despudorados.
Era fêmea feroz. Mais valente que qualquer um daqueles
machos destituídos da alfa essência. Patéticos. Eles se limitavam a empunhar
seus celulares, ao invés de lutar por um possível coito. Suas mãos fragilizadas
pelos hábitos saudáveis da modernidade não eram aptas para tal. Para eles, mais
valia o registro perfeito da nudez feminina que a satisfação do genuíno
instinto. Ao fim daquele episódio, eles voltariam para o aconchego de suas
casas, para suas esposas e famílias. Compartilhariam as gravações em suas redes
sociais diretamente do conforto de seus banheiros assépticos. As nádegas sobre
a porcelana fria dos aparelhos sanitários. Os membros flácidos entre as pernas
desnudas.
Uma senhora religiosa tentou cobri-la com um manto, mas ela rejeitou.
Não desejava aquele tipo de auxílio. Não queria mais se sujeitar aos princípios
de vida em sociedade, seguir padrões de comportamento, aprisionar-se em
vestimentas sob medida, esculpir um corpo desejável, conquistar um bom emprego,
agir de forma conveniente, servir a um deus, construir uma família, pagar
impostos, contribuir para o crescimento de sua nação. Não! Queria viver como os
animais. Sem precisar maquiar os instintos para perpetuar a ilusão humana. Sem chamar
de amor as estratégias da natureza.
Indignara-se sobre como o homem dificultara a própria vida
na terra criando tantas nomenclaturas e padrões de comportamento, quando na
verdade a vida deveria ser simples e natural. Enfurecera-se contra as amarras
invisíveis criadas pelo próprio ser humano.
Cansara da interminável luta por domínio emocional,
territorial e material. De treinar sua mente exausta para conquistar um espaço
na Terra que sempre fora sua. Da obrigação de ter um guarda-roupa repleto de
roupas para várias ocasiões. Para confraternizar-se com o próprio homem, que
por baixo das vestes nada mais é que um agregado de músculos e água. Assim como
ela.
Entendera que o ser humano de nada precisava além do que a
natureza oferece gratuitamente. Os frutos das árvores, a água dos rios, a carne
dos outros animais. Tudo orgânico, de fácil decomposição, transmutável em energia
e adubo. Em contrapartida, o produto do ser humano é intragável pela terra. Ele
abarrota o planeta com o lixo oriundo de suas criações aparentemente
necessárias. Vai a um fast food e sai de lá com duas sacolas. Dentro de uma delas,
um recipiente que comporta a comida, por vezes envolvida em outro saquinho
protetor. Na outra, uma lata contendo qualquer bebida industrializada, canudos
para não tocar a superfície com a boca, e copos para compartilhar o líquido. Lenços
para segurar o alimento nas mãos, guardanapos para limpar os lábios. Ao fim de
tudo, uma sacola para guardar o que sobrar. E o produto inútil oriundo de uma
simples refeição parece deixar de existir ao entrar nas mágicas dimensões de
uma lata de lixo. Mas ele não desaparece. Os homens que fecham os olhos para o
sofrimento do planeta, dos animais racionais e irracionais. Continuam criando
lixo, precificando o que é direito natural de todos, criando padrões de
qualidade que tornam os alimentos cada vez mais caros inacessíveis. Delimitando
territórios cuja área é bem superior ao que de fato, necessitam. Cortando
árvores que abrigam milhares de animais para construir suas confortáveis
residências para famílias de quatro ou cinco membros. Ora... Os mais agressivos
leões conseguem viver e dormir lado a lado. Já o ser humano é tão repulsivo e
hostil que precisa acomodar-se em cômodos separados por paredes.
Racionalizou que, embora os benefícios da ciência pareçam
excelentes ao prolongar a existência do homem, tal avanço era equivocado e nocivo
para todos os ecossistemas. Que o planeta não é capaz de suportar o ritmo de
reprodução humano associado ao aumento da longevidade. Para tal, o ideal é que
tivéssemos a expectativa de vida de um cão. No entanto, vivemos como tartarugas
e nos reproduzimos como coelhos.
Ao perceber aquilo, passou a ver o que era real por trás de
tantas ilusões. Despertara seu animal
interior. Ouvira o chamado da selva. Tudo que parecia necessário e lógico caíra
por terra naquela tarde cinza. E quando a noite veio, ela já era um animal
completo. Não sucumbiria junto aos demais seres humanos. Não sufocaria o eco
selvagem de seu peito. Tornou-se livre. E o único antídoto para aquilo era
morte.
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Obs.: Desculpa, Jack London... Mas o único título que cabe a esse texto é esse.
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Obs.: Desculpa, Jack London... Mas o único título que cabe a esse texto é esse.
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