sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O chamado da selva

No fim daquela tarde cinza ela ouviu o chamado. Abandonou seu lar sem se despedir dos que ficaram. Não escreveu sequer uma nota. Lá deixou tudo que tinha: carro, celular, o extrato de contas a pagar. Deixou para trás sua caixa de recordações e até a mais íntima veste. Seguiu nua pela rodovia principal da cidade. Não demorou até que um coro de buzinas explodisse e uma dezena de carros parasse no acostamento da pista. Ela não parou. Continuou a caminhar em sua ausência de caminhos, completamente absorta aos flashs e gracejos despudorados.

Era fêmea feroz. Mais valente que qualquer um daqueles machos destituídos da alfa essência. Patéticos. Eles se limitavam a empunhar seus celulares, ao invés de lutar por um possível coito. Suas mãos fragilizadas pelos hábitos saudáveis da modernidade não eram aptas para tal. Para eles, mais valia o registro perfeito da nudez feminina que a satisfação do genuíno instinto. Ao fim daquele episódio, eles voltariam para o aconchego de suas casas, para suas esposas e famílias. Compartilhariam as gravações em suas redes sociais diretamente do conforto de seus banheiros assépticos. As nádegas sobre a porcelana fria dos aparelhos sanitários. Os membros flácidos entre as pernas desnudas.

Uma senhora religiosa tentou cobri-la com um manto, mas ela rejeitou. Não desejava aquele tipo de auxílio. Não queria mais se sujeitar aos princípios de vida em sociedade, seguir padrões de comportamento, aprisionar-se em vestimentas sob medida, esculpir um corpo desejável, conquistar um bom emprego, agir de forma conveniente, servir a um deus, construir uma família, pagar impostos, contribuir para o crescimento de sua nação. Não! Queria viver como os animais. Sem precisar maquiar os instintos para perpetuar a ilusão humana. Sem chamar de amor as estratégias da natureza.

Indignara-se sobre como o homem dificultara a própria vida na terra criando tantas nomenclaturas e padrões de comportamento, quando na verdade a vida deveria ser simples e natural. Enfurecera-se contra as amarras invisíveis criadas pelo próprio ser humano.

Cansara da interminável luta por domínio emocional, territorial e material. De treinar sua mente exausta para conquistar um espaço na Terra que sempre fora sua. Da obrigação de ter um guarda-roupa repleto de roupas para várias ocasiões. Para confraternizar-se com o próprio homem, que por baixo das vestes nada mais é que um agregado de músculos e água. Assim como ela.

Entendera que o ser humano de nada precisava além do que a natureza oferece gratuitamente. Os frutos das árvores, a água dos rios, a carne dos outros animais. Tudo orgânico, de fácil decomposição, transmutável em energia e adubo. Em contrapartida, o produto do ser humano é intragável pela terra. Ele abarrota o planeta com o lixo oriundo de suas criações aparentemente necessárias. Vai a um fast food e sai de lá com duas sacolas. Dentro de uma delas, um recipiente que comporta a comida, por vezes envolvida em outro saquinho protetor. Na outra, uma lata contendo qualquer bebida industrializada, canudos para não tocar a superfície com a boca, e copos para compartilhar o líquido. Lenços para segurar o alimento nas mãos, guardanapos para limpar os lábios. Ao fim de tudo, uma sacola para guardar o que sobrar. E o produto inútil oriundo de uma simples refeição parece deixar de existir ao entrar nas mágicas dimensões de uma lata de lixo. Mas ele não desaparece. Os homens que fecham os olhos para o sofrimento do planeta, dos animais racionais e irracionais. Continuam criando lixo, precificando o que é direito natural de todos, criando padrões de qualidade que tornam os alimentos cada vez mais caros inacessíveis. Delimitando territórios cuja área é bem superior ao que de fato, necessitam. Cortando árvores que abrigam milhares de animais para construir suas confortáveis residências para famílias de quatro ou cinco membros. Ora... Os mais agressivos leões conseguem viver e dormir lado a lado. Já o ser humano é tão repulsivo e hostil que precisa acomodar-se em cômodos separados por paredes.

Racionalizou que, embora os benefícios da ciência pareçam excelentes ao prolongar a existência do homem, tal avanço era equivocado e nocivo para todos os ecossistemas. Que o planeta não é capaz de suportar o ritmo de reprodução humano associado ao aumento da longevidade. Para tal, o ideal é que tivéssemos a expectativa de vida de um cão. No entanto, vivemos como tartarugas e nos reproduzimos como coelhos.

Ao perceber aquilo, passou a ver o que era real por trás de tantas ilusões. Despertara seu animal interior. Ouvira o chamado da selva. Tudo que parecia necessário e lógico caíra por terra naquela tarde cinza. E quando a noite veio, ela já era um animal completo. Não sucumbiria junto aos demais seres humanos. Não sufocaria o eco selvagem de seu peito. Tornou-se livre. E o único antídoto para aquilo era morte.


---

Obs.: Desculpa, Jack London... Mas o único título que cabe a esse texto é esse.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...