quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Profunda destruição

"Ele tinha caminhado, a despeito de si mesmo, para essa mudança de sentimento. E, vagando pela face da terra, tinha vagado da periferia ao centro do seu deserto. Tinha se firmado na sua segurança e aceitado forçosamente a sua extinção. Imaginava-se como certos velhinhos que lembrava haver visto, os quais, ainda que parecessem frágeis e encolhidos, diziam que em seu tempo bateram-se em vinte duelos e foram amados por dez princesas. (...) Assim, em suma, aprendeu a viver: alimentando-se com a sensação de que uma vez ele tinha vivido. (...) Bastou-lhe viver desta forma durante meses, e o ano passou. E o teria sem dúvida levado mais longe , não fora um incidente aparentemente sem importância que o arrastou em outra direção maior que suas impressões do Egito ou da índia. (...) E o toque, neste caso, foi o rosto de um mortal. Este rosto, numa tarde cinza em que as folhas secas cobriam as alamedas, olhou para o de Marcher no cemitério, com uma expressão cortante como uma navalha. Marcher de imediato reconheceu nele alguém profundamente atingido – uma percepção tão aguda que nada mais na sua figura se impôs, nem a roupa, nem a idade, o presumível caráter, a classe social. Nada se revelou , além da profunda destruição que exibia em suas feições. O que aquele homem teria tido, cuja perda o fazia sangrar assim e ainda viver?
Alguma coisa (...) que ele, John Marcher, não tinha. Nenhuma paixão jamais o tocou, pois aquilo era o que a paixão significava. Ele havia sobrevivido, vagueado e definhado. Mas onde estava sua profunda destruição? (...) A verdade, vívida e monstruosa era que, durante todo o tempo que havia esperado, a própria espera vinha a ser a parte que lhe cabia (...) ".



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