sábado, 9 de dezembro de 2017

Aviso

Tive um sonho horrível. Nele, eu era apenas observadora dos fatos. O protagonista era um assassino em série mentalmente perturbado. E depois de cometer seus diversos assassínios, ele ouviu um barulho em sua penumbrosa residência. Ele caminhou pelos cômodos daquela velha mansão, e ao descer as escadas deparou-se com a origem do barulho: uma mulher completamente nua que debatia-se contra o chão e paredes. Ela estava tendo relações sexuais com um ser inanimado, uma força invisível. Ela contorcia-se de uma forma horrenda, e eu soube que ela estava possuída por uma entidade maligna. Ela olhou para o rapaz assassino, e falou com uma voz grossíssima:

"Avise para sua mãe que ela tem um pacto com o mesmo que eu."


Achei esse sonho simplesmente pesado...

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Sonho...

E em sonho estava numa bela e agradável praia, situada no fim do mundo. Nela viviam umas poucas pessoas em comunidade. Suas casinhas e barracas eram humildemente construídas com madeira e palha, cerca de dez palafitas sob finas pernas de madeira na beira do mar. Explicaram-me que aquela altura era necessária, pois o mar era bravo e ondas altíssimas invadiam a orla de forma inesperada. Uma hora estava tudo calmo e no momento seguinte era como se um monstro marítimo furioso despertasse, destruindo tudo com seus vagalhões. Era impossível prever.
Foi assim naquela manhã morna. O mar cristalino brilhava como diamantes ao sol. Conversávamos e comíamos frutos do mar, quando avistamos ao longe uma grande onda se erguer. Ela era maior que tudo. Era a maior onda que tinham visto desde então.
Instruídos pelos nativos, agarramo-nos cada um às vigas de carnaúba que sustentavam a palafita. Aguardamos a grande onda, que veio e esmurrou nossas costas com a força de um titã. Meu grito de pavor logo foi abafado pela água, que nos engoliu por completo. Tudo ficou azul, e eu via objetos sendo arrastados, passando por mim à toda velocidade. Temi que algum deles me atingisse mortalmente. Então fechei os olhos e aguardei passar.
Quando a água finalmente se retirou, eu e meu marido estávamos vivos, buscando o ar com olhos arregalados. Foi quando percebemos que outra onda se formava no horizonte.
Por algum motivo, ou uma coragem burra, resolvi encarar a próxima onda sob uma grande tábua de madeira. Assim o fiz, deitei-me sobre ela de barriga, segurando-me em suas bordas com braços abertos. Como um mártir na cruz, ou como a Rose em Titanic... A onda veio, e eu deslizei sobre ela usando a madeira como prancha.
Curiosamente, sobrevivi. A onda me levou à uma ilha, distante e escondida. A água era cristalina, mas me parecia perigosa. Senti medo e solidão. Saí com urgência e dificuldade da água. Para "subir" na ilha, tive que me erguer como quem sai de uma piscina. Em terra firme, percebi que não estava sozinha. Vi um crocodilo morto e muitos saguis. Depois notei a presença de pessoas, que pareciam foras-da-lei. Eram como guerrilheiros, integrantes das Farcs. Estive certa de que seria morta ou estuprada. No entanto, logo percebi que se tratava de fabricantes de dinheiro falso. Eles quiseram me recrutar para aquele trabalho ilícito. Prontamente aceitei, pois temi não ter escolha. Quis fugir, mas percebi que o mar raso e cristalino estava repleto de crocodilos de água salgada. Só podia estar na Austrália... Escondida, consegui ligar para a polícia e clamar por socorro.
De repente, apareceram milhares de cavaleiros na água. Desesperei-me pois cavalgavam entre crocodilos. Não demorou até que os répteis começassem a atacar as patas dos cavalos. E todos eles sucumbiram naquelas águas.

Sensação de mau agouro, exceto pelo pequeno macaco negro que me cumprimentou e brincou com meus dedos...

Não sei porque tenho sonhado tanto com isso. Sempre praia, água, ondas, tsunamis. Sempre crocodilos ou onças. Sempre...

Medo...

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Se me esqueceres

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.

Pablo Neruda, “Poemas de Amor de Pablo Neruda”

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Simplesmente lindo este poema *-*

nada

Estou certa de que há algo errado com este mundo. Não é por acaso que ele não é uma forma perfeita... que caminhe lento em elipses tortas... que gire desconsertado em seu eixo, como uma engrenagem danificada. O planeta há muito descarrilou de sua órbita. Existem erros incorrigíveis, coisas que não podem ser consertadas. Eu sou uma delas e estou prestes a não conseguir mais. É um quebra cabeças onde faltam muitas peças: essa vida. Pra piorar, a caixa está repleta de peças falsas, que jamais se encaixariam em qualquer lugar. Sou uma dessas peças. Meus encaixes estão completamente desgastados das tentativas falhas de compor uma imagem perfeita. Como fazer de mim uma nova forma sem parecer uma aberração? Como aparar as arestas sem que eu me esvaia em sangue e morra louca?  Temo já estar louca, e sangrando, e sujando tudo. Eu já estou, sim. Estou cansada, mal posso lutar contra mim. Tudo causa câncer, até respirar. Eu posso ouvir os gemidos de quem está em dor, numa distância daqui até o Japão. Posso ouvir o crepitar do fogo na mata, o choro de uma baleia, o quebrar de ossos. Posso ver e rever as injustiças em um loop eterno. Não consigo fechar os olhos. Não possuo mais pálpebras. O inferno é aqui? Não sei onde está o controle-remoto. Não posso mudar o mundo, não. Não posso mudar a mim mesma. Não consigo tocar o dedo do pé na minha nuca, ou a barriga em meus joelhos. Não consigo rodopiar sem ficar tonta. Meu olhar não chega ao ponto fixo na parede antes do resto do corpo. Meus membros estão flácidos, mas não me resta tempo pra lutar contra o tempo. Eu sou o desencaixe. A sede de justiça, que não morre nunca. Por pura covardia. Sou covarde, de mente barroca. Sou boa, eu sei que sou. Sou uma pessoa boa. Sou uma pessoa boa. Sou uma pessoa boa. Mas não sou desse mundo. Não pertenço, não me encaixo, não compreendo. Porque minha mente processa tudo do jeito que deveria ser, mas simplesmente não é. Eu sei de tudo, mas não sei de nada. Falhei com muitos, mas foi pouco perto de como falhei comigo mesma. Como me iludi. Como fui vítima de meus anseios e segui sorrindo pela trilha da utopia. Dos meus sonhos, meus maiores algozes. Sou pequena. Sou uma mosca. Sou o vira-latas que passa fome, que pega chuva, que foge dos homens e às vezes morde. Sou menor que o nada que está ao meu alcance. Sou o Layne Staley, de olhos fechados sempre. Sou o unplugged de Alice in Chains... Sou o cansaço. Sou o morrer na praia. Sou o correr correr, sem chegar a lugar nenhum. Não sou nada. Eu não sou nada. Não passo de um nada.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Dream of flood

"As the water come rushing in...
As the water come rushing over...
Dream of flood..."

Sonho com grandes inundações. Na verdade, sonho com terríveis tsunamis. Já foram três sonhos no total. Em um momento estou numa bela praia, em um apartamento ou numa casa, quando vejo de súbito uma imensa onda se formar no horizonte. Eu sei bem o que está por vir. Rapidamente, convoco todos que estão comigo para entrarmos no abrigo mais próximo. Se agir com precisão, sei que o manto impetuoso de mar não matará a todos.

Seguro quem eu amo pela mão. Com a outra, coloco um gato em meu ombro ou protejo uma criança.
"Rápido, subam o mais rápido que puderem. Apeguem-se firmemente às estruturas sólidas." - digo ao meu marido, aos meus amigos.

E enquanto me protejo, assisto pela janela o vagalhão adquirir estatura colossal. Um misto de pavor e admiração inunda meu corpo por inteiro. É realmente aterrorizante. A onda, mais alta que qualquer coisa existente na terra atinge nosso abrigo e toda a estrutura treme com o choque. O estrondo é sinistro e reverbera em nosso corpo, nossa alma. Através de uma pequena janela, assistimos de olhos arregalados tudo de repente se tornar azul, e rezamos para que o frágil vidro não se rompa. E ele resiste. E eu acordo... Como um filme interrompido no grande clímax...

É sempre perto do amanhecer quando esse sonho vem. E depois eu acordo, ainda com medo. Ainda maravilhada com todo aquele azul. A expressão em meu rosto é de "ufa...".  Passo a costa da mão sobre testa, como se nela houvesse suor. Digo ao meu marido que sobrevivemos à um tsunami, mas ele ainda está sonolento demais pra entender. Então eu me levanto meio eufórica, meio orgulhosa, meio com receio de que esse sonho seja uma premonição.

Dificilmente um tsunami chegaria à minha cidade, mas poderia com algum algum azar devastar o litoral de meu estado, que é o cenário do sonho. No entanto, meu receio é que esses conhos consecutivos sejam o presságio de tempos difíceis para mim, ou uma alusão às inundações emocionais que vez ou outra me atingem em cheio. Meu signo é da água, e o excesso dela reflete bem o meu sentimentalismo sempre exagerado.

Prazer, meu nome é Jessica, mas pode me chamar de Drama Queen.

Mas de certa forma me tranquilizo, pois eu sempre sobrevivo no fim.

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05/09: Continuo sonhando com tsunamis. Mas dessa vez, a onda já tinha passado quando cheguei. O mar engolira o lugar por inteiro e depois regurgitara tudo envolto em lama marrom. Outrora sólida, agora a cidade não passava de uma frágil maquete destruída por um arquiteto furioso. Diogo e eu caminhávamos entre o vômito do mar, escolhendo bem os passos entre escombros e poças. Abrigamo-nos em uma pequena cabana parcialmente destruída e com vista para oceano. Sentamo-nos e aconchegamo-nos um no outro, ao som do initerrupto gotejar. Relâmpagos impetuosos cortavam o céu cinzento, e seus punhos de eletricidade esmurravam a terra fazendo o chão tremer. Fumaça subia da terra, como se a Natureza resfolegasse, completamente farta da existência humana.

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Coincidência ou não, esse último relato foi a quarta vez que sonhei com tsunami de agosto pra cá... E olha só o que tá acontecendo no mundo?
Meu nome é Jessica, mas pode me chamar de "Cassandra, a Profetiza"

Misericórdia, Deus :(

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Sobre a morte

- Pai, perdoa a alma dos suicidas. Tu conheces a natureza humana. Tu nos criaste, sabes de nossas fraquezas. O suicídio é o maior grito de sofrimento de um ser. - pedi, completamente consternada pela morte de Chester Bennington e de tantos outros desistentes com os quais me identificava.
- Filha, muitos deles jamais pediram a minha ajuda. Muitos deles me negaram e blasfemaram.
- Somos ignorantes, Pai. Muitas vezes agimos sem saber, sem temer, sem acreditar. Parte de tua criação não é capaz de ver o invisível.
- Filha, por acaso conheces o íntimo de cada ser? Lembra-te das vezes que amaldiçoaste teus irmãos, afirmando que todos (sem exceção) tinham irremediável peçonha dentro de si? Quantas vezes choraste amargamente ao testemunhar atos vis e cruéis por eles cometidos? Quantas vezes pedistes a mim que os castigasse até a quarta geração?
Envergonhei-me, sem me arrepender. Todos tinham merecido aqueles sortilégios.
- Peço então que perdoe apenas os bons. Sei que a justiça humana não passa de "trapo de imundície". Mas tu sabes, Pai. Tu conheces o coração de todos. Sabes diferenciar os que não suportaram coexistir com a própria imundície daqueles que foram vítimas do peso esmagador do mundo.
- E qual medida devo usar para julgar os homens? A tua?

Embora considerasse minha "balança" próximo de justa, calei-me diante daquela pergunta retórica. Acredito que Deus já tenha todas as respostas. E qualquer argumento que eu usasse, soaria muito prepotente. As escrituras condenam os suicidas, mas acima de todas as coisas está a Justiça de Deus. Acredito que Ele possa perdoar qualquer transgressão, mas este é um mistério que não me será revelado enquanto meus pulmões viciados em oxigênio continuarem buscando o ar.

Enquanto isso, continuarei comovida por alguns. O suicídio é um ato de extrema coragem. É a negação de milhares de possibilidades, por falta de fé no futuro, pela ausência de qualquer relevância no presente. É o fundo do poço, do qual muitos falam, mas poucos chegaram. É cair num lugar de escuridão total. É tatear em volta e só encontrar um círculo infinito de pedras frias, indissolúveis e rígidas. É pisar sobre um chão lamacento repleto de vermes e anelídeos e não conseguir tirar os pés do chão, num misto de asco e medo.

"Impressionada sem cessar com a morte" - assim me descrevo. Ela me intriga desde cedo. Lembro-me de analisar o corpo decomposto de um gato morto quando era pequena. Quando vim a entender o que aquilo significada, meu espírito se abateu. Uma década e meia depois, a morte de animais e algumas pessoas ainda me comovia muito. No entanto, passei a pensar na minha própria morte como algo banal. Pensava sobre como eu poderia perfeitamente explodir uma bomba de hidrogênio que dizimasse toda a humanidade, em nome de um bem maior. Para que toda a maldade, todo o sofrimento, desigualdades a dor fossem pelos ares. Para rachar a terra mandar seu conteúdo podre para o ralo do universo, como um ovo estragado que chocaria serpentes.

Hoje penso sobre como eu daria minha vida pela pessoa que mais amo. Que prefiro ir antes a ter que presenciar sua partida. De certa forma, você só se apega à vida quando sente que ela não te pertence mais. Quando um outro ser depende de você. Quando sabe que sua partida antecipada pode arruinar a existência de alguém que você estima mais que tudo. Mas a vida em si, de nada vale, quando é a única coisa que se tem.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Escravos das próprias conquistas, parte 1

"Certo agricultor me diz: "Não se pode viver só à base de alimentos vegetais porque não fornecem matéria-prima para os ossos", e de acordo com isso dedica religiosamente parte do dia a suprir essa deficiência em seu sistema e enquanto fala, vai caminhando o tempo todo atrás de bois que, com ossos feitos de vegetais, arrastam às sacudidelas, ele e o arado pesadão, vencendo todos os
obstáculos. Há coisas verdadeiramente necessárias à vida em algumas classes sociais mais desassistidas e enfermas, enquanto que em outras são supérfluas e em terceiras, desconhecidas.
(...)
Penso que podemos, sem correr risco, ser bem mais confiantes, abrindo mão de tanta atenção conosco e aplicando-a alhures. A natureza está bem ajustada, quer à nossa fraqueza, quer à nossa força. A incessante ansiedade e tensão de alguns é quase uma forma incurável de doença. Temos a tendência de exagerar a importância de qualquer trabalho, contudo quanto deixamos de fazer, ou o que aconteceria se adoecêssemos? Como nos fiscalizamos, determinados a não viver pela fé sempre que podemos evitá-la! O dia inteirinho de prontidão, quando chega a noite rezamos as orações sem ânimo e nos entregamos a dúvidas. Somos completa e sinceramente forçados a viver reverenciando nossa vida e negando a possibilidade de modificação. Dizemos ser esta a única maneira, mas há tantas quantos os raios que podem ser desenhados a partir de um centro.
(...)
Reis e rainhas que usam um traje apenas uma vez, feito sob medida pelo alfaiate ou costureiro de Sua
Majestade, desconhecem o conforto de continuar vestindo uma roupa que assenta bem, e nessa condição se equiparam a cabides de madeira em que se penduram roupas limpas. Homem nenhum
caiu no meu conceito por ter um remendo na roupa, mesmo assim tenho certeza de que comumente há maior preocupação em estar na moda, com roupas limpas e sem remendos do que em ter a consciência tranqüila. Até que ponto os homens manteriam a sua posição social caso fossem despidos, eis uma questão interessante. Acaso poderíeis, numa situação dessas, apontar com
segurança num grupo de pessoas civilizadas, quais as que pertencem à classe privilegiada?
(...)
Em tempos idos, quando ganhar a vida de um modo honesto, com disponibilidade para cumprir projetos meus, era assunto que me atormentava ainda mais que agora, porque lamentavelmente
tornei-me um tanto insensível, costumava reparar numa grande caixa de madeira, cerca de dois metros de comprimento por um de largura, que ficava perto da estrada de ferro e servia como depósito para as ferramentas dos operários durante a noite; veio-me então a idéia de que qualquer homem em dificuldade financeira poderia obtê-la por um dólar e depois de aí perfurar alguns
orifícios para ventilação, instalar-se nela quando chovesse ou viesse a noite, e uma vez a tampa trancada, gozar enfim de liberdade para amar ou espairecer o espírito. Tal solução não me pareceu a pior, nem de modo algum uma alternativa desprezível. A pessoa poderia deitar-se e levantar-se a hora que bem entendesse, sair de casa sem proprietário no seu encalço exigindo-lhe o aluguel. Muitos
homens que não morreriam de frio numa caixa dessas se atormentam até a hora da morte para pagar o aluguel de outra apenas maior e mais luxuosa
Entre os selvagens toda família possui um abrigo da melhor qualidade, suficiente para as necessidades mais ordinárias e simples. Contudo suponho ser razoável ao afirmar que, embora os pássaros tenham seus ninhos, as raposas suas tocas e os selvagens suas cabanas, na sociedade civilizada moderna, não mais que metade das famílias dispõe de moradia própria. Nas grandes cidades e nas capitais, onde predomina a civilização, a percentagem dos que possuem casa própria é mínima. A esmagadora maioria paga por esse agasalho exterior, indispensável durante o verão e o inverno, uma taxa anual que daria para comprar um povoado de cabanas indígenas e que apenas serve para manter pobres seus moradores a vida inteira. Não insistirei sobre a desvantagem que consiste em alugar em vez de adquirir, mas é evidente que o índio tem casa própria porque lhe custa pouco,
enquanto que o civilizado geralmente aluga porque não tem condições financeiras seja para comprá-la, seja para a longo prazo alugar coisa melhor. Alguém pode retrucar que, com o simples pagamento de uma taxa, o homem civilizado pobre garante uma moradia que é um palácio comparada à dos índios. Um aluguel anual de vinte e cinco a cem dólares (são estes os preços no país) confere ao inquilino o direito de beneficiar-se do progresso de séculos: cômodos espaçosos, paredes pintadas ou revestidas de papel, lareira Rumford, estuque, persianas, encanamento de cobre, fechadura com mola, adega ampla e muitas outras novidades. Entretanto como se explica que o homem civilizado usufruindo todas essas coisas seja tido por pobre, enquanto que o selvagem, à falta de todas elas, seja rico em sua condição? Se se afirma que a civilização constitui de fato um progresso na condição
humana — e eu em particular não discordo disso, embora somente o sábio aproveite-lhe as vantagens — deve-se demonstrar que a civilização produziu moradias melhores sem torná-las mais dispendiosas. Não resta dúvida que se pretendeu nos favorecer ao se institucionalizar a vida do homem civilizado, fazendo com que a do indivíduo seja em grande medida absorvida, tendo em vista a preservação e o aperfeiçoamento da raça. Desejo, porém, mostrar o sacrifício que atualmente essa orientação acarreta e sugerir a possibilidade de uma vida que reúna todas as vantagens sem a
contrapartida das desvantagens.
O agricultor tenta resolver o problema da subsistência através de uma fórmula mais complicada que o próprio problema. Com habilidade consumada armou o laço para alcançar conforto e independência, mas ao voltar-se viu-se de pés atados na própria armadilha. Eis a razão por que é pobre; e por motivos semelhantes é que todos nós, embora cercados de luxo, somos pobres em relação a mil confortos contraditórios...
E quando afinal o agricultor consegue sua casa, pode por causa dela estar mais pobre em vez de mais rico, e a casa ter se tornado a dona dele."
E dado que os objetivos do homem civilizado não valem mais que os do selvagem, e que emprega a maior parte da sua vida na simples obtenção de necessidades grosseiras e confortos, por que há de ter moradia melhor que a do selvagem?


Walden ou A Vida nos Bosques (Henry David Thoreau)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capíluto VII

De súbito, Valentina sentiu-se engasgar, como se uma enguia tentasse descer garganta abaixo.  Estava prestes a tocar no manto da Morte, quando a Terrível Dama a empurrou para longe e deu um terrível grito!

- Malditaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! – urrou a Ceifadora, revelando sob o manto negro sua pavorosa face de caveira.

Valentina sentiu cada silaba daquele esconjuro penetrar em seu corpo e destruir seu espírito. Naquele momento, soube que a essência mais preciosa a abandonara, deixando seu interior desolado, vazio, escuro, frio. Seu corpo, antes templo de todas as virtudes, tornou-se santuário em ruínas, de portas escancaradas para o profano. A Morte se retirou em uma marcha decrépita, lançando mil sortilégios ritmados pelo ranger sinistro de ossos. Valentina sentiu-se em grande pecado... o mais desprezível de todos os seres. Quis clamar pelo divino nome, mas ao fazê-lo sentiu a boca encher-se de sangue e a visão de todos os mártires passou diante de si. Eles a encaravam com olhos inquisidores, enquanto espumavam de dor.  A moça lamentava, chorava e puxava os próprios cabelos.

- Perdoem-me! Perdoem-me! Fiz tudo por amor! Perdoem-me! - Gritava a plenos pulmões, olhando para o firmamento flamejante, que deveria ser o céu.

Quanto mais clamava, mais horrendas as visões se tornavam. No meio de tamanha angústia e sofrimento, Valentina notou a presença de um homem assustado que parecia fugir do mundo inteiro. Ele escondia o rosto sofrido na orla de suas vestes maltrapilhas; A moça segurou-lhe o braço antes que fugisse de sua presença.

- Por favor, me ajude! Não vá embora, senhor! Não me deixe aqui sem de nada saber! É este o inferno, ou será um lugar pior?!
- Inferno?! Também procuro o caminho para lá! Avise-me se encontrar! - retrucou o homem, esquivando-se nas trevas.
- Por favor, não se vá! Ajude-me! - Valentina colocou-se na frente o homem atordoado, impedindo que seguisse seu caminho.

Ao encará-la melhor, os olhos dele se acenderam.

- Vejo que também és maldita! Tu tens o sinal...Tu também tens o sinal! – Ele a analisava num misto de esperança e loucura, enquanto tamborilava com os dedos na própria testa. – Tu és maldita, assim como eu!

Valentina procurou em seu próprio corpo pelo sinal de que o homem falara, e nada compreendeu.

- Não compreendo! Qual a sua graça, senhor?!
- Filho Mau... Vagabundo... Maldito... Odiado dos Homens... Fratricida... Filho desviado de Deus... Maldito... Caim... Me chamo Caim... Aquele que vaga nas sombras... Maldito – o homem cuspia injúrias contra si, sem que pudesse controlar a língua ou os tiques.

Valentina foi ao chão ao reconhecer a abominável identidade daquele homem. Aquele "personagem" assombrara seu imaginário infantil desde que a introduziram nos preceitos da crença. E lá estava ela, no mesmo lado da balança em que o primeiro monstro da humanidade.

- Se pequei foi por amor! Deus terá misericórdia de mim! Não tirei vida alguma, além da minha! – gritou Valentina aos prantos, na expectativa de que aquele homem fosse embora e de alguma forma levasse sua iniqüidade – Eu não matei ninguém!
- Ainda não derramaste sangue, mas logo verás que nem o sangue do mundo inteiro saciará sua fome! Maldita! Tu também és maldita!

De repente, Valentina se viu a golpear o homem, e quanto mais o feria, mais ele a amaldiçoava. Ela o esmurrava na face com os punhos fechados, e cortes se abriam em todos os lugares. Tanto lhe bateu, que o rosto virou uma massa inchada e irreconhecível. O sangue jorrava abundante pelos cortes, inundando-lhe os olhos e a boca. O homem apenas ria, enquanto o líquido vermelho espumava em sua boca, tingindo seus dentes podres de vivo escarlate.

Num lampejo de lucidez, Valentina soube que perderia o controle de si. No instante seguinte, já não podia conter sua raiva e aquela força descomunal que adquirira. Não podia mais suportar aquela fome insana que crescia em cada célula de seu corpo. A vermelhidão do sangue a convidava como o mais nobre e excelente vinho. A carne ferida a atraia como o mais suculento manjar. Sem ao menos hesitar, devorou a face inteira do homem, que “morreu” sorrindo.

Ao sentir-se saciada, vislumbrou o cenário visceral ao seu redor. Pedaços de carne humana, couro cabeludo, dentes e ossos menores espalhados por toda parte, inclusive sobre si. Tocou o próprio rosto e sentiu que adquirira as feições de uma besta demoníaca. Os caninos pontiagudos rompiam-lhe a gengiva causando imensa dor. Olhou para as próprias mãos e vestes, cobertas com o sangue de sua iniquidade. Olhou para dentro de si, e soube que jamais seria a mesma novamente. O mundo girou, a vista se anuviou e ela desfaleceu.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Glória moribunda

(...)
" Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?"
(...)

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo VI

Valentina despertou na floresta com a impressão de ouvir asas batendo aos seus ouvidos. Estava certa de que era um morcego, pois podia ouvir o seu trissar estridente.  Espantou a criatura com as mãos e levantou-se assustada. Seu vestido estava imundo e os longos cabelos repletos de folhas secas. Não sabia por quanto tempo ou dias estivera na mata. Estava completamente confusa, mas constatou que o sol se poria em breve a julgar pelas nuances de luz que cortavam a folhagem. Pouco a pouco começou a recordar as revelações que Arthur fizera, e seu rosto foi se contorcendo até explodir em copioso pranto.  Estava certa de que aquela dor dilaceraria seu peito e todo seu corpo. Era tão intensa que podia senti-la fisicamente... Uma dor que a fez gritar até sentir que os pulmões explodiriam e as cordas vocais rasgariam. Um pranto tão doído que tossia e engasgava como que vítima do mais nocivo veneno: o rancor, que se espalhava veloz por cada uma de suas veias. Naquele momento, as preciosas virtudes abandonaram o casto coração de Valentina, assim como o sol, que se retirou e deu lugar a uma treva profunda... E tão escuro ficou que nada mais podia ver.

Cega de ódio e destruída por dentro, seguiu pela mata guiada por uma intuição obscura e desconhecida. Como que por encanto, o véu negro da escuridão se abriu e ela se viu novamente no vilarejo. Tudo estava envolto daquela estranha neblina que vinha se manifestando nos últimos tempos e mal podia enxergar um metro à sua frente.  Valentina seguiu errante pelo cenário pálido e fantasmagórico, até perceber que estava na ponte. O vento soprava gélido, balançando as candeias de um lado para outro.  A chama das lamparinas tremulava num tom sobrenatural de azul, como pequenas fadas em combustão a agonizar. O crepitar sinistro era como gemidos de dor, que se propagavam no vento em funesta sinfonia. Pouco a frente, foi se formando a silhueta sombria de um cavalheiro, que se tornava cada vez mais familiar. Ele se virou, e seus dentes salientes pareceram brilhar quando sorriu. Ela conhecia bem aquele riso torto e maquiavélico. Era Nikolai, que (como sempre) parecia esperá-la.

Ele abriu os braços e, por algum motivo inexplicável, Valentina sentiu-se impelida a abrigar-se em seus braços. Nikolai tomou-a por inteiro dentro de sua capa. Seu peito era rígido como mármore e frio como uma sepultura. Ela não sentiu conforto algum, mas sim o pavor inerte de um animal indefeso nas garras de uma fera predadora. No entanto, contrariando todos os seus instintos, ela apegou-se ainda mais àquela sensação, mergulhando profundamente naquele abraço.

-Se realmente me amas, mate-me, por favor! Eu não posso viver neste mundo nefasto sabendo o que sei! – disse entre lágrimas e soluços.
- Então queres mesmo morrer?! – Nikolai perguntou quase sorrindo, enquanto afagava os cabelos de Valentina.
- Com toda minha alma, sim! É o que desejo. Prometo rogar aos céus que não lhe imputem minha morte por crime!
- Querida, não te perturbes com este compromisso. Estas tolices de céu ou inferno há muito não turvam meu espírito e nem regram meus atos. Não te ofendas, mas sequer penso em tais coisas. Todavia, sou-te grato, pois bom é o teu intento.
- Se fôlego tivesse para viver mais um dia, juro que me empenharia em tua salvação. Chamar-te-ia amigo, e destituiria teus pensamentos de tais heresias.
- A única salvação que preciso é do inferno de não ter você... Em vez de palavras santas, converta teu precioso fôlego em beijos e eu me converterei a ti com crença jamais vista.
- Por favor, não me galanteie. Não pague minhas puras palavras com estas outras cheias de pecado travestido de amor.  
- Oras! Julgava-me livre, mas vejo que já me converti. Tu mandas, e eu servilmente calo.
- Então, meu amigo e servo, mate-me. De algum lugar tua santa irá interceder por tua alma. Peço-te apenas que conserves minha beleza... E que sejas rápido.
- Depois de morta, estarás mais bela que nunca. Mas confesso que não posso imaginar maior beleza que esta que meus olhos vêem.
- Usarás arma de fogo ou coisa assim?
- Admiro tua bravura, mas será mais fácil se não souber. Feche os olhos, sim?

Valentina olhou em volta, em breve despedida. Soube que sofreria por suas irmãs, em especial a caçula. Por seu adorado gato Leopoldus também. Mas não poderia continuar entre os poucos que amava e ao mesmo tempo viver sob o teto dos inimigos de sua alma.

Obedeceu a instrução do cavalheiro e deixou-se guiar às cegas até o parapeito da ponte. Estremeceu de frio e medo, mas desta vez não seria covarde. Abraçaria a Morte, qualquer que fosse sua aparência... E estando de olhos fechados, era como se o Nikolai fosse a própria Morte...

O vento pareceu adquirir consistência, deslizando em espirais por seu pescoço, braços, tornozelos, invadindo suas vestes. Uma atmosfera hostil a envolveu por inteiro, e ela se sentia como um animal acuado, que pressente desgraças antes que aconteçam. Era como se Nikolai a estivesse rodeando, como um lobo em volta da presa.  E com ele, uma matilha inteira formada de ar. A sensação era de que a ameaça vinha de todos os lados e ela não ousou abrir os olhos. Não conseguia. Estava petrificada e seu corpo não obedecia aos instintos de sobrevivência.
Valentina sentiu o corpo inteiro de Nikolai contra suas costas. Cada músculo, cada membro, cada contorno, numa proximidade exagerada e íntima. As mãos lascivas envolveram sua cintura e prenderam-na com volúpia.  Ele pôs a palma sobre sua têmpora, e sem encontrar qualquer resistência, moveu-lhe o rosto, deixando o pescoço da moça completamente exposto. De olhos fechados, ela sentiu o toque do nariz grego sobre sua pele a absorver o seu cheiro, os lábios frios a beijar e depois lamber sua garganta. Sentiu-se ultrajada, vulnerável, impotente. Mas ao mesmo tempo, como que possuída por um encantamento imundo, desejou que aquilo se tornasse mais intenso, que ele enterrasse o rosto de vez em seu pescoço, em seus cabelos e que lhe arrancasse a carne.  E assim o fez. Ele a mordera! Aquele homem perverso e libertino cravara os dentes em seu pescoço com a violência de uma fera. Após certa resistência, a pele rompeu-se sob os caninos pontiagudos e mortais de Nikolai. O sangue abandonava seu corpo em jatos na intensidade imposta por aquela boca vil, que sugava ininterruptamente. Era como se seu corpo não mais existisse, e seus membros fossem completamente feitos de dor.  O único som que conseguia emitir era um abafado arranhar de cordas vocais, e foi emudecendo na medida em que enfraquecia. Aos poucos a dor cedia, e sentia-se leve como uma pluma. Seu corpo estava arqueado de uma forma que causaria desconforto a qualquer um que estivesse lúcido. No entanto, ela sequer sabia em que posição estava e perdera completamente o senso de direção. Todavia, sabia que as mãos de Nikolai ainda a apoiavam. O local onde ele a mordera estava úmido, e presumiu que fosse de saliva ou sangue. Sentia o estalar dos lábios dele em seu pescoço. Ele agora a beijava, como se não fosse mais a fera de tempos antes.

Seus últimos pensamentos foram de arrependimento, por permitir que aqueles lábios estranhos a tocassem. Sentiu como se chorasse, e um terrível frio a invadiu. Por fim, seu corpo se debateu. Eram os espasmos da Morte. Ela estendia as mãos esqueléticas em sua direção, e embora não pudesse ver seu rosto descarnado, sentiu-se amparada pela senhora sombria.  Valentina abraçou a Morte e sentiu um inesperado conforto ao ser envolvida por seu manto. 

terça-feira, 30 de maio de 2017

O Fantasma e o Vampiro - Capítulo V

Os dias que se seguiram foram rotineiros. Valentina ia ao cemitério, trocava juras de amor com o Fantasma. Permaneceu, inclusive, no propósito de morrer. Retornava para casa pelos mais sombrios e perigosos caminhos. A sensação de ser observada não cessou. Todavia, o máximo que lhe aconteceu foi ser atacada por dois ou três morcegos que tiravam rasantes próximos à ponte.
Cruzava com o cavalheiro frequentemente, e este insistia em levá-la até sua casa (contra sua vontade, obviamente). Descobriu que seu nome era Nikolai Slavomir, e que herdara um castelo pouco afastado da cidade. Fora isso, o cavalheiro nada mais revelou sobre si. No entanto, seu sotaque pesado e a pronúncia forte do “r” indicavam que ele era de terras bem distantes. Talvez de outro continente.
- Tens negócios por aqui? Ou estás empregando tuas noites a “seguir-me”? – Perguntou Valentina.
- Se continuo nesse tedioso vilarejo, é por ti. – Nikolai parou à frente da moça, interrompendo a caminhada - É chegada a hora de saberes que gosto de ti. Que te amo.
- Pois bem. Saibas que pretendo morrer. E isto, para juntar-me a meu amor, o ÚNICO de minha vida. – Valentina respondeu com veemência.
Os olhos azuis de Nikolai encheram-se de mágoa. Valentina apiedou-se e tentou amenizar suas últimas palavras:
- Não deverias desperdiçar teu tempo a tentar conquistar um coração selado, como o meu.
- Minha querida, tenho até o último de teus dias para tentar. E se isto não for suficiente, talvez mais: a eternidade.
- Agora blasfemas ao proferir tais crenças.
- Hahahaha! Donzelas de teu tipo me comprazem: destemidas, porém tolas.
- Isto foi rude! – exclamou, boquiaberta. Era a primeira vez que aquele cavalheiro faltava-lhe com o respeito. - Peço que não me acompanhes mais. Sei o caminho de casa, assim como posso perfeitamente me defender. – pegou uma pedra e ergueu-a de forma ameaçadora, sugerindo que a usaria caso necessário.
Nikolai sumiu como que por encanto, deixando apenas seu riso sinistro no breu.

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Na noite seguinte Valentina revelou a Klaus a existência de Nikolai. Relatou todo ocorrido e lamentou ter se deixado acompanhar por um desconhecido. E enquanto confessava, deu-se conta do quanto aquilo fora imprudente e inapropriado. O noivo pediu que não fosse mais ao cemitério, pelo menos por alguns dias. Em vão.
- Virei aqui todos os dias, até mudar-me definitivamente para teu túmulo.
- Ainda com essas idéias tolas?!
- Também me tomas por tola?! Trata-se de nosso amor! – profundamente magoada, saiu às pressas de sua presença, pisando sobre flores e sepulturas.
Para aumentar seu desgosto, mal saiu do cemitério e lá estava Nikolai, sentado em um banco com ar nobre e riso cínico. Valentina tentou ignorá-lo.
- Estás atrapalhando meu propósito... Enquanto estiver perto, a Morte não virá. - suspirou, ao perceber que Nikolai caminhava a seu lado.
- Estás enganada. Quando ela vier, não me colocarei entre vós. Não te livrarei. É uma promessa.
- Mas não desejo sua companhia. Isto já causou problemas demais entre meu noivo e eu.
- Diga a seu noivo que duelemos então. O vencedor ganhará teu coração.
Valentina começava a por em questão a maturidade daquele cavalheiro. Não se sentia mais propensa a levá-lo a sério, ou irritar-se com ele. Seria inútil.
- Meu noivo e você jamais poderiam duelar...
- Diga-me, Valentina. O que poderia fazer para ganhar teu amor?
- Não há nada que possa fazer para tal, senhor. Se quiseres ao menos minha estima, apenas deixe-me seguir meu caminho. A única companhia que desejo nesta triste noite, é a da Ceifadora das almas.
- Querida, és tão bela quanto sombria. – riu Nikolai. – Providenciarei este encontro.
Como de costume, Nikolai pareceu sumir por trás de sua capa negra. Valentina estremeceu.
A atmosfera estava úmida, cheia de chuva disfarçada. E seu corpo era como aquele ar: completamente feito de lágrimas contidas. Não demoraria até precipitar por inteiro, e escorrer pelo chão, até sumir... Ao chegar na ponte, sentou-se no parapeito e pôs-se a observar a agitação que o sereno provocava na superfície do lago. 
- Perdoem-me os céus por desejar que mãos de vento me lancem nas profundezas do córrego, e que nada além de minha alma torne a subir!
De súbito, foi surpreendida por um crescente vozerio. Era um grupo de rapazes, que se aproximava. Dentre os três beberrões, estava seu pretendente Arthur. O rapaz, terrivelmente debilitado pelo ópio, usava os ombros amigos como muletas.
- Valentina! És tu de verdade, ou um anjo mal disfarçado?
A moça sobressaltada escondeu o rosto entre os cabelos.
- Amigos, sois maus! Maldita seja a mistura que me serviram por álcool, pois agora até em delírio me vejo diante desta mulher! Não basta ter de me casar com ela? Vá embora Valentina! Em meu peito só há lugar para Barbara.
Aquilo a surpreendeu, pois imaginava que o filho do conde a amasse.
- Arthur, não é fantasma ou demônio. É sua noiva! – disse o mais sóbrio. – Mostre algum respeito!
- Tu sim, és mau, Arthur! És um ingrato! Quem, neste vilarejo miserável, não desejaria passar a noite sobre os seios de Valentina?!– disse, entre soluços o outro amigo, o mais bêbado. E depois explodiu em ruidoso riso.
- Perdoe-me Valentina! É que não a amo! Eu amo Bárbara! No entanto, casar-me-ei contigo, pois é meu dever... Tu sabes, somos ricos... – Arthur desvencilhou-se dos amigos e caiu sobre os braços de Valentina, que o amparou. O rapaz continuou, em tom de confidência – Pro inferno teu dinheiro e o meu... Mas teu noivo morreu... Não quero que Barbara seja morta também! Apesar de tudo, saibas que não te amo... Nunca te amarei... Desculpe!
Um terrível tremor se apoderou de Valentina. A moça quase tombou ao decifrar o significado daquelas palavras. O amigo mais sóbrio antecipou-se para apoiá-la, enquanto Arthur foi ao chão.
- O que ele está dizendo? – Valentina jogou-se sobre Arthur e segurou-lhe pelas golas. Os olhos da moça já emanavam em uma torrente de lágrimas.
- Peço que o perdoe, pois não sabe o que diz. – argumentou o amigo sóbrio.
Valentina livrou-se dos braços protetores e sacudiu Arthur para arrancar a verdade em meio aos soluços ébrios do rapaz.
- Se tu sabes algo sobre a morte de Klaus, conte-me agora! Exijo-te! Suplico-te!
- Solte-me! Se aquela a quem eu amo nos surpreender assim, estará tudo acabado... Tudo. – protestou Arthur, porém sem forças para livrar-se de Valentina.
- Se disseres o que sabes, juro que não mais me verás. Não precisarás casar comigo, pois não estarei mais aqui entre vós. Suplico-te que fale!
- Jure... – respondeu Arthur, e foi ao chão.
- Juro pela saúde de meu pai, pela vida de minha mãe!
- Terás de jurar por outros... Depois que eu falar, vai desejar aos teus pais algo mais terrível que a morte.
Aquelas palavras carregadas de álcool faziam sentido, por mais doloroso que fosse.
- Jure Valentina...
- Juro!
- Por quem tu juras?
- Por Deus, pelo rei, pelo eterno descanso de meu falecido noivo! Fale!
- Não o leve a sério. – interviu o amigo sóbrio. - Está bêbado, não vês? Delira.
- Eu não estou bêbado... Deixe-me falar! – empurrou o amigo, e continuou sem meias palavras - Seu noivo está morto porque nossos pais assim o quiseram.
- O que estás dizendo???
- Isto mesmo, Valentina! Foi uma emboscada... Mas não matarão Bárbara. Antes eu mato meu pai, o teu, o padre, até mesmo o diabo!

Valentina tombou para o lado, tão pavorosa era aquela informação. Ao levantar-se, nada mais pôde fazer, além de correr, correr, correr. Embrenhou-se na parte mais densa do bosque, de forma que não soube quando o dia raiou. Deitou-se catatônica entre as raízes de uma árvore centenária. A Mãe Natureza apiedou-se de seu choro, de forma que nem mesmo uma formiga a molestou.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Adélia

Conto dedicado à minha amiga Lane... :) Para nossa possível coletânea sobre mulheres... 

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ADÉLIA

O calor estava de matar naquela tarde abafada de outubro. A salinha cor de areia decorada com cactos artificiais era como a representação de um deserto. Adélia jazia imóvel no sofá, imersa em seu deserto pessoal... Na vastidão inóspita de sua psiquê... Numa espécie agonia solitária e quieta... A respiração escapava compassada pela moldura rubra de seus lábios. A pele formigava em contato com estofado barato e úmido de transpiração. O decote entreaberto mostrava uma quantidade generosa de suor represado entre os seios. O tempo, por sua vez, também parecia confinado entre os ponteiros do relógio de parede quebrado.

Por fim, chaves giraram as engrenagens da fechadura numa seqüência bem peculiar de duas voltas e meia, seguida de um solavanco. A porta se abriu e os sinos de alerta tilintaram. Victor entrou e deparou-se com a figura feminina em seu sofá. Adélia lembrava as musas febris que inspiraram poetas ao longo dos séculos. Mas a fragilidade de suas feições contrastava com as roupas negras e os impenetráveis óculos escuros.

- Ora, ora. A bela adormecida não vai acordar? – disse irônico, enquanto contornava a orla rendada do sutiã de Adélia com o dedo indicador.
- Não estou dormindo, Victor. – respondeu Adélia, sem se mover um milímetro sequer.
- Pois pra mim, pareceu que você estava dormindo. – queixou-se Victor, afastando-se subitamente. - Se fosse a polícia ou um dos Niners, estaríamos fodidos, porra. Você precisa manter os olhos abertos.
- Se fosse qualquer pessoa além de você, eu saberia. Meus ouvidos estavam bem atentos. Todos os meus sentidos são bem eficientes.
- Claro que são... Claro! – bufou, com uma expressão confusa de riso e raiva... Como foi o dia? 
- Poucos clientes. Livre-se dessa porcaria. Esse bagulho não presta, Victor. Só vendi pra viciada do primeiro andar. E tive que dar um desconto.
- Porra! – esbravejou Victor, jogando contra a parede um dos poucos vasinhos decorativos que restavam. - Não vamos conseguir pagar os Niners até o fim da semana!

Adélia se levantou como que na recuperação súbita de um coma. Enxugou o suor da testa e prendeu os longos cabelos negros em um coque alto.

- Se você não consertar esse ventilador, não sobreviveremos até lá de uma forma ou de outra.  – disse a moça, dirigindo-se à porta.
- Aonde você vai? – perguntou, com os braços abertos em fúria.
- Vou para casa. – respondeu Adélia, enquanto acendia um cigarro. – Não agüento mais esse calor. Já embalei tudo. Fiz seu serviço e o meu. Chame alguém pra ajudá-lo com as vendas... Se é que mais alguém vai querer essa porcaria batizada.

Victor colocou-se diante da porta, impedindo que a moça saísse.

- Pra casa?! Você nunca chamou aquela porcaria de casa. Mal pisa lá. Porque isso agora? Tá me enrolando, Adélia?! Tá querendo me fazer de otário?! – o rapaz vociferava bem próximo de seu rosto, impregnando tudo com o hálito impregnado de álcool, cocaína e cigarros.

Àquela altura, Adélia mal podia lembrar que um dia o amara. Que entregara a melhor parte de sua vida a um belo e amável Victor, e que em algum momento foram o mais feliz casal do mundo.

- Aqui está um inferno! Preciso sair deste buraco nem que seja por uma noite! – e sua voz era quase uma súplica.

A mão de Victor estalou ruidosamente na face direita da moça, que foi ao chão. De olhos enxutos, Adélia recolheu os óculos quebrados e se levantou em silêncio.

- Olha o que você me fez fazer! Olha só! – Victor iniciou uma marcha nervosa na sala, em um misto de arrependimento e raiva. – Porra... Por favor, me perdoe. Fique comigo, Adélia. Não sei mais o que fazer! Os Niners querem tirar minha pele. Sem você ao meu lado, eu não consigo. Por favor, fique!
Ele se reaproximou e prendeu o rosto da moça entre suas mãos e beijou seus lábios cerrados.
- Pare, Victor. Por favor, pare.

Adélia tentou se desvencilhar, mas as mãos do rapaz já percorriam o interior de sua calça jeans em apressada busca por resquícios de paixão. No minuto seguinte ele estava dentro dela, num coito incômodo, desajeitado, seco. Ela cedeu. Cansara de resistir.

Em tempos passados, ela teria chorado copiosamente pela agressão sofrida.

Um dia atrás, ela teria apontado uma arma para ele e diria que se a agredisse novamente, estouraria seus miolos.

Mas não naquela tarde quente e abafada de outubro.

Ao fim do ato, ela abotoou a calça e disse a Victor que ainda assim iria para casa.

- Que seja. Faça o que quiser. – respondeu sem olhá-la nos olhos. Victor sentia vergonha de si em seus breves momentos de lucidez.

Ao sair do prédio abafado, Adélia respirou aliviada. Os últimos raios de sol se retiravam e uma brisa gelada começava a soprar contra sua pele. Caminhou lentamente rumo à casa de seus pais, enquanto fumava seu último Marlboro. A fumaça saia de sua boca lentamente – não como o bafejar de um dragão furioso, mas como um sopro sutil a atravessar o diastema entre seus dentes.

Era agradável estar do lado de fora depois de semanas à fio trancafiada no apartamento velho e decadente que dividia com Victor. No início, ali fora uma espécie de refúgio. Uma miniatura de Éden, onde desfrutavam da presença sempre nua, um do outro. Eles se amaram ao extremo... A ponto de esquecer que o mundo era mundo. Entre tórridos beijos e profundos suspiros, uma dose ou outra, um quarto, uma aplicação. Entre conversas mais profundas que o oceano, um rasgo pra acelerar... Entre uma palavra torta, uma acusação, alguns miligramas disso ou daquilo para acalmar... Pra esquecer que o mundo continuava sendo mundo, com sua atraente porta escancarada para a perdição... Como uma boca gulosa que nunca se farta de tragar as almas dos que sonham...

- Que inferno! – Bufou, ao perceber que a sensação prazerosa que sentira há pouco estava aos poucos se esvaindo. A realidade a perseguia como um demônio opressor, que impunha as mãos sobre sua cabeça e turvava seus pensamentos. Lá estava ela, novamente perguntando a si mesma se de fato vivenciara as douradas lembranças as quais se apegava para continuar vivendo, ou se tudo não passara de uma ilusão... Um belo e saudoso simulacro criado por todas as substâncias que ingeriram juntos, e que, por algum motivo, não surtiam mais o efeito esperado. Não sabia mais o que pensar. As drogas eram melhores antigamente? Ou seu relacionamento estava na mais obscura fossa? Ou talvez sua vida inteira tenha se resumido a uma sequência de abismos, e abusos, derrotas e ilusões. Sentiu-se novamente a sufocar. As pernas falharam tombou de joelhos. Não havia lua, nem brisa, nem asfalto, casas, ou prédios, ou nada... Estava de volta ao seu deserto sem fim, mas não podia ver... Estava tão escuro... Sentia a língua enrolando no céu da boca e aos poucos ficava cada vez mais difícil de respirar.

Quando estava prestes a expirar, ouviu bem ao longe uma sequência de sons que era bem peculiar... Chaves girando numa fechadura, duas voltas e meia, seguida de um solavanco... Uma porta se abrindo e sinos tilintando... Como que há milhas de distância dali. Uma voz gritava seu nome e ela soube que era de Victor. Ela tentava respondê-lo e pedir-lhe ajuda, mas era em vão, pois seus gritos saiam como um engasgo feio e pastoso. Logo mais, sentiu seu corpo estremecer inteiro e em um relance pôde ver o rosto desesperado de seu amado bem próximo do seu. Ele parecia gritar a plenos pulmões, mas logo suas feições se tornaram um vulto...um borrão... e tudo escureceu novamente.

Quando o socorro chegou, deparou-se com duas emergências em vez de uma. Adélia jazia imóvel sobre o sofá de onde nunca saíra. No chão, o corpo de Victor ainda quente sobre uma poça do próprio sangue. Separaram-lhe as mãos e rabiscaram o laudo sem grande perícia: "overdose irreversível", "suicídio por arma de fogo". O relógio ainda marcava 11:11, e aqueles números finalmente fizeram sentido: era tarde demais.  




quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Discurso

Quando afirmas que pretendo ser um indivíduo deveras excelente, na verdade revelas tua opinião mais íntima sobre mim... Destilas em tua boca amarga a admiração secreta que te turva os pensamentos e impede de gozar teus dias. Se soubesses a soma dos minutos que gastei a refletir sobre teu proceder, entenderia que teus pensamentos não são recíprocos. Poupa teu fôlego. Recolhe tua língua. Vive e deixa-me viver.

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Obs.: Não é pra ninguém específico... É apenas um discurso que eu usaria se tivesse nascido há dois séculos e me importasse com o que alguém pensa de mim kkkk

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Os gigantes e as formigas

Às vezes analogias não passam de figuras de linguagem que utilizamos para consolidar argumentos  falaciosos. Mas às vezes elas são como perfeitos punhais que rasgam o véu de ignorância que cobre nossos olhos. Tenho uma analogia que, além fundamentada, ainda fez-me sentir um irremediável lixo. Ou pior: uma praga, que consome tudo que é vivo e que não tem tantas alternativas razoáveis para sua vil existência. Explicarei enquanto agonizo.

Em minhas andanças em busca de um pedaço de terra para chamar de lar, notei o quão rápido a civilização avançou por espaços antes "desabitados". Há 10 anos, eu morava na saída da cidade. Hoje não posso mais afirmar tal coisa, pois tudo cresceu muito para todas as direções. Onde havia matas, lagoas e outros ecossistemas intocados, agora há uma panificadora, uma academia, condomínios e casas, muitas casas. O que era estrada, agora é via de acesso para muitas moradas.
A impressão que dá é de que tem acontecido um grande progresso, e de que a cidade está crescendo. Muitos até se alegram com isso. Esquecem-se de que os lugares que parecem inabitados é o lar de muitos seres vivos (como nós). Ao avançarmos sobre essas terras, estamos matando e desabrigando pássaros, anfíbios, lagartos, soins, jacarés, capivaras e milhares de outras criaturas. Os que não morrem, migram para terras vizinhas que logo menos serão devastadas por nós, seres humanos, detentores de plenos poderes e donos do mundo.

A formiga ergue verdadeiras civilizações embaixo da terra. O passarinho abriga sua família em aconchegantes ninhos. Mas nós humanos somos como gigantes que sequer atentam para a existência dos outros seres e saímos pisoteando, derrubando, queimando e construindo sobre os lares dos outros seres. Como se tudo no planeta existisse em nossa função.

Às vezes imagino como seria se outros seres gigantes surgissem na terra e, para eles, nós fôssemos pequenos como formigas. Eles viriam com seus pés gigantes e pisariam nossas casas e famílias como se não existíssemos ou fossemos insignificantes demais para desviarem seu caminho. Eles nos desapropriariam e construiriam suas casas sobre as nossas como se tivéssemos menos direito de existir que eles.

Também imagino como seria se o governo simplesmente nos mandasse embora de "nossas terras" ou matasse quem resistisse em ficar. De certo haveria um grande reboliço no mundo. Porque sabemos falar. Porque sabemos criar e manusear armas. Mas se fossem gigantes, definitivamente não teríamos alternativas a não ser fugir até que a morte nos encontrasse. Nossos gritos de formiga não seriam ouvidos. Os titãs prevaleceriam. Ergueriam seus lares felizes sobre nosso sangue sem remorso algum. E a mídia titânica publicaria fotografias de suas famílias sorridentes e incentivaria outros gigantes a comprar mais terras que, na verdade, nunca pertenceram a alguém, mas sim a todos.
Não tem jeito. O mundo vai acabar. E nós humanos sofreremos por último. Só não sei se quem sofre por último, sofre mais.


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Sim, estou numa fase ativista e existencial.

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...