sexta-feira, 2 de maio de 2014

Glay O'Hanne Lindsay

Baseado em um sonho do Glay, a pessoa com o subconsciente mais invejável no mundo (e meu melhor amigo). Não está fiel ao que ele me contou, pois perdi nossos registros de conversa... Não consegui fazer uma correção apropriada, já que minha mente não anda muito boa... Além do mais, tenho certeza que na cabeça dele era bem melhor do que pude converter em palavras, mas espero que ele goste...

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Com a avidez de um cavaleiro templário, Glay O’Hanne pilotava seu corcel metalizado sobre os cacos que restaram do mundo moderno. Conduzia a motocicleta com a maestria de quem maneja as rédeas de um cavalo bravo. Ela guinchava e empinava, mas sua estrutura forte ainda suportaria muitas milhas de caos... Sabia as peculiaridades daquela máquina como jamais soubera de qualquer pessoa. Jamais confiara um centavo a quem quer que fosse. Jamais entregara seu coração para uma mulher cuidar. Agora confiava sua vida àquela moto... Provavelmente seria o último relacionamento de sua vida. Seu último suspiro seria ao lado dos destroços de sua Shadow... Mas por enquanto, resistiriam. Aquela situação era, de longe, a pior pela qual haviam passado.
As coisas pareciam até belas naquele fim de mundo em que chegaram. A poeira que deixavam para trás adquiria um brilho dourado ao encontrar os feixes de luz do sol. A natureza triunfava sobre o asfalto ferido, que cedia aos cipós e raízes. Uma vastidão de flores margeava o que um dia fora estrada. Elas adquiriam o aspecto de uma enorme e colorida colcha que de certa forma fazia lembrar o aconchego do antigo lar. Todas juntas tinham um perfume delicioso e singular. Por um breve momento pensou em parar e colher algumas, mas a quem presentearia? De seus entes queridos, não restava sequer sepultura para que pudesse depositar aquelas flores e chorar... Todos voltaram ao pó, cumprindo a profecia. E com ele não foi diferente. Também era pó. Um homem quebrado, reduzido a nada. Percebeu quão miserável era quando teve de desenhar o rosto dos que amava, pois as memórias se fragmentavam dia após dia.
“Maldita máquina humana!” - praguejava, ao racionalizar que seu cérebro expulsava lembranças antigas para armazenar todas as novas informações necessárias à sobrevivência.
Tinha ainda o olhar sombrio quando avistou uma espessa cortina de fumaça que se erguia no horizonte, como uma torre negra. Após dirigir alguns minutos sem que chegasse ao foco, deu-se conta de que seria um acidente de grandes proporções. Soube que estava próximo quando teve de desviar de uma enorme placa de metal, e depois doutra. A estrada logo ficou repleta de obstáculos retorcidos e incandescentes. Finalmente pôde avistar enormes destroços do que parecia ser um avião. Absorvido pela possibilidade de encontrar outros seres humanos (ainda que mortos), girou sobre o eixo da moto deixando um forte rastro no asfalto. Tão rápido desceu, que uma nuvem de pétalas e poeira ainda pairava atrás dele quando seus pés tocaram o chão.
Correu o mais rápido que pôde e logo viu uma figura feminina deitada sobre um pedaço de sucata. Extasiado, tombou de joelhos ao lado da mulher. Tomou-se de espanto ao analisar melhor aquela figura pálida e perturbadoramente bela. Não fossem as formas inegavelmente femininas e a delicadeza de suas feições, diria que não era humana. Não tinha cabelos ou sobrancelhas, o que realçava seu aspecto sobrenatural. Os lábios carnudos tinham um excepcional tom de rosa- alaranjado, e pareciam almofadas de veludo. Sua pele era tão branca que em certos pontos parecia brilhar, como mármore... Reclinava-se sobre o metal fumegante sem sofrer qualquer dano pelo calor.
Sobre o corpo esguio repousava um manto translúcido com a mesma tonalidade de sua pele. Uma ponta do tecido estava preso sob o delicado pé, enroscando-se na perna ligeiramente arqueada e deleitando-se nas delícias do desconhecido. O manto seguia cobrindo-lhe o ventre e os seios numa tentativa falha de conter o desejo em quem a visse.
A expressão em seu rosto era indecifrável.  Seus lábios entreabertos ameaçavam romper em um gemido. No entanto não aparentava sofrimento ou gozo, e sim um aspecto imaculado de santa, de agonia e êxtase... Um olhar de mártir, de quem padece todas as dores do mundo, mas contempla o divino no céu...
Não podia esquivar-se do olhar daquela mulher. Seus olhos eram de um azul tão intenso que subjugariam exércitos inteiros diante de tal peculiaridade. À medida que se aproximava dela, era inundado de calor e calmaria, como se fosse uma concha submersa em águas termais... Como se sentisse cada elemento, a energização dos chakras, a influência dos astros... Como se o sol e os ecos do universo o invadissem... Queria mergulhar naquele azul sem despir-se de roupas e calçados, como um pescador tolo se lança ao mar por uma sereia. Podia ouvir sua melodia! Podia ver no fundo! Um vórtice de luz, o brilho de tudo que é precioso e raro! Quis chegar mais perto, intensificar aquela sensação, e quanto mais perto estava, mas cheio se sentia.
Tão cheio ficou que em dado momento não pôde mais suportar tanta plenitude. Aquilo de repente tornou-se um peso, uma terrível pressão contra seu peito, como se o oceano lhe entrasse pulmões adentro e não pudesse contê-lo em si. Não podia respirar ou gritar, apenas deixar-se esmagar em sua impotência. Sentiu que perderia os sentidos e a luz que via no fundo foi escurecendo gradativamente até apagar.
De súbito recobrou a consciência, e lá estava novamente, do lado de fora, no mundo de caos ao qual pertencia, rodeado de sucatas, diante da mulher.  Mas os olhos dela agora eram completamente vermelhos, à semelhança pavorosa de demônios. Eram de uma cor doente, maligna! Seu crânio foi ficando repleto de veias, até que rachasse em vários pontos como a porcelana de uma boneca endiabrada. Sua mandíbula despencou em um riso exagerado e neste momento O’Hanne sentiu-se tomado de pavor... O maior medo que já sentira em toda sua existência.
A vegetação próxima foi murchando e a podridão se alastrando pelos pedaços de sucata, como um fungo escuro de rápida propagação. De alguma forma, o rapaz soube que aquela praga lhe causaria dano caso tocasse alguma parte de seu corpo. Ele iniciou sua fuga, e teve certeza de que era um alvo, pois o ranço avançava rapidamente em sua direção. Ele montou sua Shadow e acompanhava pelos retrovisores a marcha da pestilência. Os campos de flores morriam rapidamente e o asfalto era tomado por nervuras negras a poucos centímetros da motocicleta. Não importava o quanto acelerasse, não conseguia vantagem qualquer naquela perseguição. A praga poderia alcançá-lo se assim o quisesse, mas preferia caçá-lo, alimentar-se do seu desespero e de suas forças.
Em determinado momento percebeu que o pneu traseiro estava tomado por inervações. Era o fim! No ápice da exaustão e desalento, deixou-se derrapar e quis morrer. No entanto, seu corpo nada sofreu além de alguns arranhões. A Shadow, por sua vez, tombou e quicou até desfazer-se em vários pedaços. O’Hanne clamou por sua companheira e chorou como há muito não fazia. O fungo revestiu sua carcaça como uma mortalha, até silenciar os últimos ruídos da motocicleta.
O rapaz não pôde se erguer. Vertia lágrimas, suor, sangue e saliva. Fora derrotado, humilhado. De nada valiam seus músculos, sua consistência e suas faculdades mentais. Nada podia contra aquelas forças demoníacas. O ranço sitiava seus pés, mas não investia contra seu corpo. Esperava que fugisse, para assim persegui-lo novamente. Pois que o matasse de uma vez! Afinal, não entendia o motivo ser o último ser vivo em um mundo pós-apocalíptico. Não lutaria mais. Se houvesse um propósito para sua vida, que o Ser Superior lhe enviasse providência.
Permaneceu catatônico e no fundo de sua mente encontrou lembranças boas... A memória perfeita dos rostos e feições daqueles a quem amava. O rosto do pai, sempre barbeado... As expressões divertidas do irmão... As rugas de afeto e preocupação da mãe... Amigos, professores, seu único amor... Todas aquelas pessoas o rodeavam, em uma espécie de cerco protetor. Uma aura quente os envolvia, como se fossem anjos de luz. Tinham olhar terno e sorrisos sutis.  
Repentinamente a atmosfera pareceu mudar. O demônio do ar soprou seu hálito gélido de maldade e a tudo tingiu de escuridão. Os olhos gentis tornaram-se desconfortavelmente esbugalhados e os sorrisos quase imperceptíveis foram crescendo, crescendo, crescendo! As estruturas das bocas romperam e as mandíbulas cederam, em um riso maquiavélico e repugnante. A ciranda necrótica girava em um ritmo obsceno. Os pés lazarentos pisavam sobre as maxilas e perdiam o equilíbrio. Os que iam ao chão eram arrastados pelos demais, sem que parassem de girar um momento sequer. Os globos oculares tornaram-se vermelhos, como os olhos da mulher que vira antes. Glay O’Hanne investiu contra círculo e foi ao chão com braços e antebraços decepados. Gritou até exaustão...
Mas os horrores não cessaram. Ao olhar em volta, deu-se conta de que estava cercado por milhares de mulheres como a que vira antes, também deitadas em sucatas. Elas o encaravam raivosamente como se intentassem fazê-lo sofrer tormentos ainda desconhecidos pelo ser humano. Abriram suas bocas e longas línguas escuras vibraram em uma terrível melodia. O rapaz tapou os ouvidos tombou de agonia. Cerrou as pálpebras, mas ainda assim podia ver os olhos vermelhos e as línguas morféticas serpenteando. À medida que cantavam, a natureza sofria e houve um grande tremor.
A terra sob seu corpo cedeu e ele despencou em queda livre na mais espessa e abissal treva. Presumia que no fim de tudo haveria grandes e fatais hastes que o empalariam, ou um lago cheio de criaturas famintas. Mas o que encontrou era pior! Era diabólico! Profano! Ele estava mergulhado em sangue, vísceras e toda secreção humana! Gritava desgraçadamente enquanto removia restos de couro cabeludo e pelos que lhe impediam a visão. Colunas vertebrais e intestinos balouçavam contra seu corpo. Tão enojado estava que não podia mover-se em busca de uma saída. O cheiro era indescritivelmente podre e a visão daquilo tudo, pior. Estava certo de que se conseguisse sair dali, morreria em seguida, vítima de uma doença fatal adquirida naquele antro de bactérias e imundície.
Entre gritos e soluços, avaliava o cenário claustrofóbico. Era uma arquitetura antiga, semelhante a catacumbas pagãs. Era formada por grandes blocos de pedras lodacentas e esverdeadas. Esculpidos nas rochas havia serpentes, leviatãs e hieróglifos danificados pelo tempo. Olhou para cima, mas não viu nenhum ponto luminoso, o que indicava que a superfície da qual despencara estava muito distante. Curiosamente, o local era completamente iluminado por uma fonte de luz desconhecida... Obviamente projetado para uma “boa apreciação da vista”. Aquele lugar deveria existir há muito. Quantos infelizes já estiveram lá? Aparentemente nenhum saíra vivo, pois no mundo em que vivera jamais ouvira histórias, ou uma lenda sequer sobre algo semelhante.
Alguns daqueles órgãos estavam podres, mas outros pareciam bem frescos. O pensamento de que seu corpo desmembrado seria o próximo entre tantos outros lhe encheu de desespero. Num ímpeto de coragem e instinto de sobrevivência, pôs-se a nadar, afastando os restos mortais com os braços abertos, avançando em busca de uma porta.
De súbito, uma efervescência começou a agitar o sangue e logo se tornou tão forte que as borbulhas estouravam e respingavam para todos os lados. Os membros fervilhavam e tremiam freneticamente, como se agonizassem depois de mortos. Um coro desesperado de gritos e lamúrias ecoou em todo o lugar, reconstituindo todas as atrocidades e torturas ali cometidas. Era terrivelmente pior que a cantoria das mulheres da superfície! Ele pôs-se a gritar! Seu suplício jamais teria fim!
Uma pavorosa lhama negra emergiu da podridão. Seus pelos estavam endurecidos pelo sangue, e ele julgou que o animal fosse o autor dos tormentos. Dos olhos vermelhos de sangue emanavam uma aura vermelha e cruel. Sua boca espumava ódio e saia vapor de suas narinas. Abraçada à lhama, uma mulher cabisbaixa e nua escondia suas formas na pelagem do bicho. Longos cabelos negros lhe encobriam a face, mas corpo completamente lacerado estava exposto. De suas costas pendiam restos mortais fundidos à pele, emanando um vapor fétido de enxofre. Quando ela revelou o rosto sério, foi o golpe fatal para O’Hanne.
Era ela! Seu único amor! A moça a quem amara por uma década de sua vida. A que habitava sua mente e subconsciente. A quem erguera palácios e reinos em seus sonhos. A única a qual entregaria seu coração se pudesse mudar seu passado. Aquela por quem colocara uma corda no pescoço.
Quando a situação no mundo ficou crítica, ela alegrou seus dias com sorrisos e danças. Ele a salvou da morte inúmeras vezes. Dormiam nas melhores camas e abrigavam-se em ruínas. Brincavam na chuva e sentavam-se ao fogo. Projetavam sombras e inventavam histórias antes de dormir... Aqueciam um ao outro em noites frias, até que um dia ela simplesmente não acordou. Agonizou febril por um dia inteiro, como que presa em um terrível pesadelo. Na hora morta deu o último suspiro. Morreu em seus braços sem causa ou despedida. No último momento ele não chorou, nem sacudiu o corpo inerte. Ergueu-se de imediato, amarrou uma corda numa árvore e depois em seu pescoço.
Ao recordar esses fatos, deu-se conta de que era a última memória que tinha até o presente dia. Forçou a mente e nada pôde lembrar. Ao olhar nos olhos da moça, entendeu por fim que também estava morto. Aquilo tudo era parte de seu inferno. Passaria a eternidade no vale da sombra da morte. Chorou amargamente e estendeu a mão para a amiga. Ela apegou-se mais forte à lhama e ignorou seu sofrimento. O'Hanne não sabia que a figura feminina era só uma ilusão destinada ao seu tormento... Aquela a quem amava estava sendo torturada em um inferno paralelo, mas bem próximo do seu.    


Swarovski e Sangue

Em noites tristes como esta, fico a observar o espaço no jardim onde a grama não cresce. Pensei que ao enterrá-lo, floresceria... Quero deitar-me na terra e beijar o chão sob o qual descansa aquele a quem mais amo. Mas se eu também dormir, serei maldita. Se me recolher mais cedo, não haverá perdão. Dizem que ele não tem alma e que perderei a minha se a ele me juntar. Deveria isto inibir meu querer? Anular meu arbítrio?
 Tenho sono.  
Sempre me desculpo por não ter sido rápida... “Por ter entendido mal tua postura esquiva. Por ter me ofendido quando recusaste meus beijos. Não sabia eu que teu fim seria em um canteiro qualquer”.  “Mas não falarei de ti quando tenho tantos assuntos vulgares para tratar. Dentre eles, minha vida. Mencionarei teu nome quando escrever uma poesia. Ela terá teu nome... Até breve. Vou me entregar ao que mereço. Não a tudo... Senão não voltaria...”
Despeço-me e entro no carro. Como tantas outras vezes, uma lâmina é minha “válvula de escape”. Sempre estremeci ao ouvir expressões covardes como esta. Pois cá estou, escondendo-me atrás de uma penosa junção de palavras. No fim, sei que a Psicologia não me esbofeteará por esconder-me atrás de suas saias. Ela é a madrasta do século, advogada de todos os doentes... Mas seus dedos não afagam meus cabelos enquanto me corto sozinha no carro. Não há substituto perfeito... Não há culpados por minha insanidade...
Conto os dias de clausura nas paredes de meus braços. Quando a lâmina rasga, o sangue esguicha. No começo eu choro e grito. É uma vermelhidão intensa, um cheiro forte. A aquarela de sangue e lágrimas tinge a tudo que encontra e flui como bem quer. Resolve dar novas cores às minhas roupas e a meu rosto. Envereda-se por entre os cristais de minha pulseira e rouba-lhes o brilho. No final é até bonito... Não é apenas dor, é libertação e alívio... Down in a Hole é a trilha de meu declínio e tudo flui em um mesmo sentido... O ritmo decai, a vista escurece, o sangue escorre e os pés formigam lá embaixo... Um suspiro profundo indica que meus pulmões estão novamente calmos e a inquietação passou...
Há quem não entenda, quem sinta pena... Outros me julgam mal. O sangue... diz-se que este salvou a humanidade da danação! Redimiu pecados! A ausência dele em nosso corpo significaria a morte... Os homens se gloriam no sangue de seus heróis e dizem beber o de seu Salvador, mas torcem o nariz ao vê-lo de perto... Não tenho pretensões maiores de ser cristo, não sangro por uma causa maior...
Essa dor física é bálsamo para minha alma contrita, e quando tudo acaba ainda posso dormir. Não é como essas químicas mundanas que tiram o sono, ou te induzem a ele... E depois abandonam seu corpo demente, levando consigo o que te restar de bom. Nenhuma delas foge a essa maldita regra...  E você, que quase amou aquilo, agoniza como um porco. Grita, vê monstros na mobília. Amaldiçoa o raiar do dia e quer matar o Sol. Mas agora que perdi a fé nas substâncias e converti-me à dor, posso traçar o ciclo de minha confusão mental. Ela dura entre dez e quinze dias, tempo estimado para pele se reconstruir.
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Os dias têm sido mais longos...
Falta-me pele para esta maso-masturbação da derme. O que restará de mim nos anos de frigidez? Temo o dia em que não me flua mais a vermelha seiva. Que minhas células adquiram a formidável resistência dos mártires. Ou morrerei antes em algum exagero?
Tenho sono... Mas não quero dormir sozinha.
Tenho febre e nem sei mais o que quero.
Não, eu não ouço vozes. As vozes não me mandam fazer nada, pois elas não falam ao meu ouvido. Que diagnóstico mais equivocado...
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Sonho, e em meio ao terror noturno vejo vísceras de quem eu amo. Intestinos completos caem de um ventre aberto em uma poça de lama. Na noite seguinte o encontro saudável, mas o esfaqueio sem motivo aparente.  Ele me retribui da mesma forma, mas é estranho pois nenhum de nós morremos.
Declaram-me amor que eu sei não existir.
Encontro Jesus Cristo no peito de um homem.
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Racionalizo, mas o que encontro é impossível se conciliar. Do mundo inteiro, sou a pessoa que mais se auto-perscruta. Duvido porém que isso me redima diante de Deus e dos homens.
Hoje, tudo que faço é tão horrível que apenas escrevo. E o que escrevo, não compartilho. Rasgo, engulo, enterro, queimo.
Oito mil e setenta e sete dias.

Oh não. Está sangrando muito. Eu me abri demais.  

Magica em pó

Tomei a pequena taça e, num gole precipitado, ingeri toda aquela substância cristalina. No entanto, antes mesmo que o líquido percorresse minha garganta por inteiro, já estava curvada sobre meu ventre. Aquilo queimava cada célula percorrida e eu podia sentir a textura inchada de minhas papilas gustativas. Gemi e roguei pragas desconexas, mas não pude recolher minha língua de volta à boca. Esgueirei-me penosamente em busca de apoio. Com aspecto de cão hidrofóbico, salivava excessivamente sobre meu próprio corpo.  Olhei suplicante para meu mentor, tentando conter aquela terrível ânsia de vômito. Ele riu e disse-me que ainda era fraca, mas deveria aguentar. Segundo ele, aquele suplício era comum a todos os iniciantes. Além do mais, era o preço a se pagar... Eu duvidei que alguém pudesse se acostumar com aquilo. Estava certa de que aquele líquido poderia matar alguém. Se no inferno houvesse água destinada à tortura das almas, deveria ser como aquela substância de falsa pureza. Recolhi a língua e cerrei os dentes. Não havia nada a fazer, senão aguentar. Aquilo já estava dentro de mim, afinal... No entanto, surpreendi-me ao ter uma rápida recuperação. A agonia cedeu à dormência e tontura. Com voz pastosa, perguntei o que viria adiante.

Meu mentor aproximou-se de mim com as mãos estendidas. Demorei a distinguir o que era real entre os seis vultos de braços que via. O homem segurou minhas mãos em forma de concha e nelas depositou um pequeno recipiente. Disse-me que tivesse cuidado, ou deixaria a mágica cair.  A voz dele parecia produzir ecos no lugar, e o frio nos abandonara por completo. Imaginei que fosse este o motivo de o meu mentor estar de peito nu. Eu não havia notado sua nudez até então e tampouco conseguia lembrar em que momento ele se despira. Não distinguia, porém, os traços de seus músculos e outras peculiaridades. Tudo era um borrão com aparência de pele, vez ou outra iluminado por um feixe de luz azul de origem desconhecida para mim.

Ele mandou que eu aspirasse o conteúdo do recipiente. O pó tinha uma cor branca que eu conseguia distinguir bem apesar da escuridão. Sem questionar, funguei até meus pulmões não suportarem mais tanta mágica e ar. Meu nariz e lábios ressecaram, e o fundo de minha garganta amargou. Continuei a fungar com força para que tudo descesse até o fim de meu corpo. Fechei os olhos com bastante força, e uma poderosa energia tomou meu corpo. Segundos depois comecei a flexionar meus joelhos no ritmo dos derbaks e alaúdes que soavam em minha mente. Tombei a cabeça para trás, rindo. Desenhava com ela infinitos e espirais no ar, numa sincronia perfeita entre pescoço e cabelos. Iniciei uma espécie de dança tribal, e senti que eu havia inventado aquilo, que era o ritmo de meu corpo, de meu sangue e órgãos. Serpentava em movimentos sinuosos, enquanto meu mentor ria e dizia que eu liberasse o que havia em mim. Naquele momento eu era o ser mais importante do universo, mas também o mais sujo. Queria rastejar sobre o chão, como a cobra que era. Eu tinha liberado grande parte de mim, mas queria destituir-me também de toda a culpa e impureza. Mas aquilo era impossível. Certamente adquiriria novas máculas após o fim daquela experiência e enquanto eu vivesse.

Segui a música e por trás daquelas notas eu encontrei uma lâmina. Venerei-a como o mais sagrado e oportuno dos objetos. Meu mentor pediu que entregasse a ele, que não usasse aquilo contra mim, que a mágica acabaria e só restaria o fim... Que não haveria nada além daquilo, e se houvesse, seria fogo e tortura.

- Ofereço-te liberdade e você escolhe a morte... – desabafou, perplexo.
- Tua libertação é temporária, insuficiente para mim...
- Um momento de liberdade deveria valer a vida inteira. Mas se não for suficiente, posso te oferecer mais. Sabes que te amo e que não há nada que não te daria.
- Sei que podes me dar, e voltarei por mais. Não te preocupes, pois ainda não busco a morte. Só quero livrar-me um pouco mais de mim.
“Estou jogando o jogo que me levará para o fim. Esperando a chuva para lavar quem eu sou...” 

Forrei o piso com um véu de seda e fui ao chão, sem sentir o real impacto em meu corpo. Recompus-me, sentei em lótus e ergui a lâmina com as duas mãos, fazendo aquilo parecer um ritual também. Notei que meu mentor desviara o rosto de mim. Magoei-me com aquele gesto. Como ele poderia ter zombado de mim quando ingeri a o cuspe do diabo e agora fraquejava diante de algo tão simples?! Talvez não o fosse, mas naquele momento eu era forte e tudo era pequeno demais para me causar danos significativos. Por esse motivo, apliquei grande força quando passei a lâmina sobre meu pulso esquerdo. Naquele momento eu recobrei a perfeita visão e fiquei nauseada ao ver o generoso sulco que abri. As fibras ainda brancas irrigaram-se rapidamente com o sangue escuro. A ferida golfava e engasgava em borbulhas de sangue. Deitei-me no chão e fechei os olhos a fim de não sucumbir ao mecanismo natural do desmaio. No entanto, não sentia dor alguma. Temi que aquela dormência me impedisse de ver a chegada da Morte. De fugir dela, quando viesse. Para diminuir a hemorragia, ergui meu antebraço. E como era frio o sangue que escorria! Ele se ramificava em meia dúzia de filamentos em direção a meu cotovelo.

Os olhos preocupados de meu mentor indagavam-me se estava bem. Menti que tinha tudo sob controle e tentava manter minhas palavras lúcidas, apesar do torpor e de toda aquela mágica. Ele deitou-se sobre meu corpo e me aqueceu, pois era frio novamente. Mantinha sua promessa de me proteger, apesar de meu declínio. Ao recobrar o alento, livrei-me do cerco de seus braços. Pedi que me ajudasse a levantar, e que dançássemos. Ele também aspirara a mágica e tinha consigo o seu próprio ritmo.

Toquei meu pulso aberto e com dois dedos, tingi de sangue as maçãs de meu rosto. Olhei meu mentor com aquele aspecto de índia-cara-pálida. O olhar com que me retribuiu não tinha mais traços de preocupação. Seus olhos ardiam na penumbra e brilhavam ao serem atingidos pelo feixe de luz azul. Toquei novamente a ferida e desenhei com meu sangue em suas costelas. Ele tomou meu pulso e quis beber o que dele fluía. Eu disse que não. Que antes bebesse do veneno da mais peçonhenta cobra à sorver aquela seiva imunda. Então ele me apertou contra o seu peito e dançamos impregnados com aquele cheiro de ferro.

Senti-me tão compreendida e tomada de emoção que quis chorar. Aquele rapaz, tão jovem para ser guia, tinha uma sabedoria de mim que ninguém mais possuía. E era o único na terra que, me amando, permitiria que eu descesse mais fundo. Que eu rolasse em minha própria lama ou a bebesse em copos de cristal. Brindaria comigo, inclusive. Se eu o convidasse a matar, incendiar, demolir, a resposta seria: “quando?”. Isso não se devia apenas ao fato de me amar. Mas pela coragem contida em cada fibra de sua consistência. 


Aquela noite, realizamos muitos prodígios. Meu mentor virou um deus egípcio e tinha o dom de apalpar o vento. Mas tudo a meu respeito era dor... 

Quetiapina

Naquela manhã, ela desistira de convencer a todos de sua inocência. Afinal, não estava mais tão certa da ausência de culpa naquele assassinato. Todas as evidências apontavam para sua condenação, e o fato de não possuir memória qualquer do ocorrido não era mais tão relevante. Era bem possível que estivesse louca, desprovida de importantes faculdades mentais. Diante de todos aqueles fatos tão claramente expostos, das reconstituições perfeitamente articuladas, da concisa teia de argumentos, creu-se culpada.
Amara aquele homem. Vivenciara as fases do luto (maior parte delas na cadeia, aguardando julgamento). Bateu-se contra grades e paredes, abrira um sulco na testa. Chorou e gritou até que uma carcereira menos paciente a silenciasse com um golpe de porrete. Aprendeu a sofrer baixinho e engasgar-se com os próprios soluços. Mas agora,diante daquele tribunal, sentia-se vazia. A dor corroera-lhe a estima e as forças. Não podia mais firmar-se em sua própria mente, em suas convicções.
O burburinho da corte agia como um mantra, induzindo-lhe a um profundo estado de meditação. Divagava sobre outras situações em que poderia ter sido agente ou vítima de um crime. Perguntava-se que outros delitos teria cometido sem que pudesse recordar, arrepender-se ou vangloriar-se... Se teria sido molestada, uma ou mais vezes. Sentiu-se paranóica ao imaginar que poderia ter um agressor em seu estimado círculo de amizades. Rostos conhecidos apareciam em turbilhões de flashs, oscilando e repetindo-se em padrões agonizantes. Podia ver os traços mais marcantes de cada um e por um momento desprezou terrivelmente aqueles olhos, dentes e bocas que antes admirava.
Uma mão preocupada resgatou-lhe do abismo mental em que estava. Surpreendeu-se em uma expressão dolorosamente rígida. Dentes trincados, lábios contritos, uma ruga acentuada entre os olhos. O advogado tomou-lhe o punho e perguntou se estava em condições de continuar aquela audiência. Disse-lhe que poderia tentar uma prorrogação e explicou que seria conveniente para elaborar uma defesa melhor. Pálida, acenou negativamente. Sabia que suas chances eram nulas. Apenas queria que aquilo terminasse, de uma forma ou de outra.
Seu único capricho era ingressar em uma instituição mental. No entanto, temia que isto soasse como o velho artifício de alegação de insanidade do qual tantos sujeitos vis se valiam para driblar a justiça. Doía-lhe que a possibilidade de acharem que ela tentaria reduzir a pena por matar seu homem. Gostaria de jurar a todos naquele tribunal de que não o faria. De que seu castigo a açoitaria onde quer que estivesse. Gostaria de jurar gritando,e que a verdade rasgasse sua garganta de forma tal que todos cressem.
Surpreendeu-se novamente naquela expressão dolorosa, e pensou que talvez não devesse mais conter. Talvez aquela incapacidade de manter feições sadias testificasse de vez sua loucura. Precisava de um diagnostico, de um laudo, de qualquer coisa que atestasse sua condição mental. Precisava para si, para entender-se por fim. A incômoda idéia de não recordar-se de importantes fatos novamente a assombrava. Um hipnotista! Era o que precisava. Quando terminasse a audiência, pediria ao seu advogado que estudasse esta possibilidade.  
- Onde a senhorita estava na manhã em que a vítima foi assassinada?
- Estava em casa até as oito. Depois fui para o trabalho.
- Poderia fazer um breve relato de suas ações até o horário em que saiu de casa?
- Acordei as sete, como de costume. Foi quando vi a mensagem em meu celular...
- Sua primeira reação ao acordar foi olhar seu celular? – interrompeu o juiz.
- Sim, Meritíssimo. É um hábito. É sempre a primeira coisa que faço, pois durmo com ele ao meu lado. Fiquei um tanto confusa ao ler, mas continuei minhas atividades normalmente. Alimentei meus bichos, tomei banho... Vesti-me. Não tomei café, pois estava um pouco atrasada... Fui para o serviço.
- Atrasou-se?
- Sim, pois perdi algum tempo pensando sobre como responderia meu namorado.
- O que exatamente dizia a mensagem?
- Dizia que o bolo que eu tinha lhe dado estava péssimo. Que parecia uma mistura de excrementos e veneno. Perguntou-me se era alguma vingança.
- E o que a senhorita respondeu?
- Pensava que fosse alguma brincadeira, um exagero. Brinquei e disse que eu deveria ter colocado arsênico demais durante o preparo. Em seguida desculpei-me, pois desde o início sabia que o bolo não estava tão bom. Não sou boa confeiteira.
- Depois disso, qual o próximo contato com a vítima?
- Mandei-lhe outras mensagens. Perguntei se estava bem, mas não obtive resposta. Após um dia inteiro sem ter contato com ele, resolvi ir a sua casa na manhã seguinte, antes do trabalho.
- A que horas a senhorita chegou lá?
- Aproximadamente 7:30. Toquei a campainha insistentemente e esmurrei o portão após 10 minutos. Ele não veio abrir, mas seu carro estava lá. Seu cachorro de estimação latia como louco. Resolvi pular o portão. Abri a porta de entrada facilmente com um chute, pois é velha e defeituosa. Quando entrei na cozinha ele estava lá, caído. Sua pele estava muito escura e tinha aquela substância endurecida em sua boca... Acho que era vômito. Sua língua estava esticada para fora da boca escancarada.
- Esta recordação lhe comove?
- Sim, senhor. Sei que todos esperam que eu chore, mas por algum motivo não consigo mais.
- Alguma vez a vítima lhe agrediu, física ou verbalmente? Fez algo que lhe suscitasse ódio, raiva ou desejo de vingança?
- Não... – fez uma pausa ao sentir um terrível calafrio percorrer sua espinha. Não entendeu aquela reação. Ocorreu-lhe novamente a possibilidade de não lembrar os fatos como eles verdadeiramente eram. – Eu o amava... Acho... – engasgou. - Perdoe-me, eu não sei mais. Não posso confiar na minha mente.
Houve uma inquietação na corte, e os murmúrios tornaram-se vaias. Ela apenas fechou os olhos e esperou que o juiz silenciasse a todos com as batidas de seu martelo. Buscou dentro de si o que houvesse de amor, saudade e dor. Esperou que as lágrimas forçassem suas pálpebras, mas seus olhos estavam secos ao encarar a massa furiosa.
- A causa mortis apontada pelo legista foi envenenamento por arsênico, substancia esta citada em sua mensagem à vítima. Como explica esta “coincidência”?
- Sou uma grande fã de Agatha Christie. Hercule Poirot... Miss Marple... Sempre desejei que ela fosse minha avó... – riu, enquanto parecia lembrar os enredos – Agatha Christie matou vários personagens com arsênico. Achava que tinha certo charme... Matar alguém com arsênico. Teve a história dos bombons envenenados. Aliás... No caso dos bombons não foi arsênico. Cianureto, certo? Enfim... Mencionei arsênico em tom de brincadeira. Nada sei sobre essa substância ou como consegui-la.
Juiz e promotor entreolharam-se. A corte novamente explodiu em acusações, desrespeitando as regras de conduta no tribunal. A audiência foi encerrada a fim de conter os ânimos. Puseram-lhe as incômodas algemas e encaminharam-na para viatura. O que a lei, a mídia e a multidão de justiceiros civis não sabiam é que no mundo não existia clausura semelhante à de sua mente. Jamais poderia libertar-se dela. No entanto, duvidava que esta perpétua prisão possuísse limites.
Sua mente... hora Patmos, hora limbo, hora universo infinito. Talvez houvesse algo de bom em não conhecer-se. Poderia desligar-se do mundo finalmente. Contrair-se e depois expandir. Viver o onírico de forma gratuita. Imaginar era tão bom... Sempre fora o melhor passatempo, desde criança. Criava toda sorte de aventuras antes de dormir e continuava em sonho.
Gotas de chuva salpicavam o vidro do carro assim como novas lembranças surgiam. Tinha a amiga imaginária de pele verde e cabelos roxos... Tinha também os amantes feitos de sombra que ela mesma projetava na parede do quarto. A mulher loura, o velho que subia em sua cama... Imaginava o tempo todo! Tanto que dormia durante as aulas. Mesmo quase reprovando por tantas divagações, sentia-se especial. Pensou que deveria sentir-se assim novamente. Aquilo poderia ser encarado como doença, ou como dom.
Na verdade, era um ser fantástico! Eram tantas as peculiaridades sobre si... No intervalo de um minuto, ela poderia flutuar como bailarina e depois incorporar a ginga dos marginais. Cruzar as pernas como uma dama para depois lançar-se em uma postura de alguém sob efeito de drogas.  Falar com toda fluência e depois retrair-se muda a respeito de um assunto qualquer. Era dançarina, mas também queria lutar. Fazer com que todos a sua volta vertessem sangue e suor... Seja pelo amor ou sexo, pela guerra ou pela morte. Talvez por isso conhecesse tão bem as pessoas e quase nunca se enganava. Lamentava, porém, que ela mesmo sendo tantas, não pudesse fazer qualquer julgamento de si.
Sempre desejara matar alguém. Torturar e depois matar. Catástrofes sempre lhe excitaram. Incomodava-lhe profundamente não lembrar detalhes do crime pela qual era acusada. Gostaria de lembrar outros, caso houvesse cometido. Se soubesse que acabaria matando alguém, teria feito cada vez que sentisse vontade. Usaria seu senso de justiça para livrar o mundo de muitos tipos desprezíveis. Empunharia diferentes instrumentos: armas de fogo, punhais, balestras. Atropelaria, armaria emboscadas, atearia fogo. Eram tantas as possibilidades e as vítimas. Faria do mundo seu matadouro clandestino até enfadar-se dos próprios métodos.

Pensar em toda aquela sanguinolência causou-lhe incontrolável excitação. Desejou todos aqueles homens da lei. Insinuar-se-ia para os policiais que a acompanhavam. Era uma longa viagem até o presídio... Chegando ao destino final, assassinaria sua companheira de cela. Tinha vontade de matar e o sangue que estava sobre suas mãos era o que lhe restava. Almejou de todo o coração poder lembrar desse novo crime...

Céu da boca

Mandei-lhe uma carta, e o convenci a respeito do que fazer com nossas vidas. Disse-lhe que, assim como ele, eu também não tinha por que existir. Vivíamos miseravelmente, e todo o ar que devolvíamos ao mundo era impuro, cheio de mágoa. Nosso sofrimento era açoite à fantasiosa onipotência humana, e todos (sem exceção), queriam nos consertar. Mas sempre fomos descartáveis, sempre soubemos disso: que nossa máquina não poderia ser reparada. Curiosamente, éramos aquele tipo de quinquilharia das quais as pessoas não querem desapegar. Rimos ao reconhecer isso.
Ele perdeu a mulher de sua vida, e eu perdi meus gatos. Ele padecia por ter conhecido o amor e dele ter sido privado. Eu sofria por não poder demonstrar afeto a qualquer outro que não fosse dotado de uma bela e felpuda cauda. Ele não poderia viver sem os sôfregos suspiros de sua senhora, e eu, sem o delicioso ronronar de meus felinos. Mas os cuidados de sua mãe o mantinham vivo. E eu, carola, temia o Divino e Seus desígnios. “Se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio...”
Propus então que ele viesse até mim, tirasse minha vida, e por fim, a sua. Eu pagaria por suas despesas e por sua companhia. Depois de mortos, não precisaríamos de economias, ou de honra. Não algemariam seu cadáver. Não o levariam para uma cela. Não o profanariam. Não... Não haveria inquérito. Haveria banquete e festim! Os vermes possuiriam nossos corpos, lambuzar-se-iam com nossas carnes, sorveriam cada gota da mais íntima secreção. Teríamos finalmente um caso de amor sob opulentos lençóis de terra! O maldito amor dos vermes! Por cada maldita célula de nossos corpos.
Trocamos inúmeras cartas e discutimos os mais excelentes métodos. Por fim, entre os mais poéticos e rudes, optamos por um simples e rápido: duas balas disparadas com maestria. Concordamos que aquilo tinha de ser um assassinato. Apesar de ínfima, era minha única chance de não ir para o inferno. Se houvesse qualquer oportunidade ou tempo para que eu buscasse ajuda, seria suicida em vez de vítima, e os braços de fogo do inferno me receberiam após o suspiro final. Ele, por sua vez, após me matar, teria de escolher entre a morte e a prisão, e a primeira alternativa seria a única que poderia considerar.
Após tudo acertado, ele veio. Não fez muitas cortesias, mas me beijou. Eu retribuí o beijo, e pedi para que me mostrasse a arma. Assim ele fez, e me senti excitada. Ele se afastou de mim e tirou suas roupas. Enquanto eu tirava as minhas, pensei em meu íntimo que um último momento de prazer não seria mau. Tive a impressão de ouvi-lo chamar pelo nome da outra, mas decidi ignorar.
Quando terminamos, nos cobrimos com o lençol. Nossa intimidade era de amigos e não de amantes. Ficamos calados, cientes do que estava por vir. Finalmente ele se sentou sobre a cama, e pegou a arma na cabeceira. Curvou-se e pôs-se a analisá-la entre os joelhos. Sua demora em dizer ou fazer qualquer coisa me incomodou.
- E agora? – perguntei, tentando rir.
Ele permaneceu em silêncio por algum momento, e por fim, tropeçou nas próprias palavras:
- Você acha que... Bem... Se eu apenas me ferisse... Se eu me machucasse gravemente... Você acha que ela viria por mim? Que me aceitaria de volta?
- Não sei! – minha voz de repente saiu mais alta e aguda que o normal. – Se ela realmente te ama, certamente viria por você. – tentei me recompor, mas não consegui parecer fria.
Ele continuou seu raciocínio. Minha frustração não o intimidou, e não temeu parecer fraco diante de mim. Ele não me amava, então não importava o juízo que eu fizesse.
- Se você quiser, eu ainda posso te matar. Apenas tenho que apagar as impressões, meu DNA. Quem sabe daqui uma semana?
Contrariada, pus minhas roupas, cuspi alguma ofensa e sai. Caminhei sem rumo por trechos conhecidos de asfalto. Não passávamos de hedonistas com aspirações mórbidas e ultra-românticas. Parei em uma esquina e acendi um cigarro. Suspirei, e uma mosca pousou em meu braço. Enojada de sua postura trêmula, tangi a criatura com a mão. Xinguei-a de amor, mas sabia que ela morreria no temporal que estava por vir.

asrca irvgitinas

Tudo aquilo, porque perdi minha pureza mental no dia anterior, e agora eu podia trair. Me tornara uma meretriz. Os tempos decretavam isso. Cães sitiavam minha casa, e certamente me comeriam depois que eu morresse, ou talvez nem esperassem tanto assim.
Eu os tangia, mas não queria atirar-lhes pedras, ou vasos de minha varanda. Aquilo doeria muito, e os cacos certamente lhes perfurariam as cabeças. Eu ainda mantinha meu gosto por crânios animais.
A noite veio, e os cães foram engolidos pelas sombras. Livre daquela ameaça, fui então clinicar os pintinhos amarelos do meu quintal, que jaziam enfermos em gaiolas. Os menos doentes estavam presos, pois a peste tinha dificuldade de passar por entre as grades. Os mais debilitados, arquejavam ensopados em cima das gaiolas. Era tarde demais para eles, mas era injusto que estivessem molhados em uma noite tão fria como aquela. Quando me aproximei, vi que apenas um continuava vivo. Indignada, o cobri com uma ponta do papel toalha sujo que forrava a estrutura.
Sai à rua para ver por que o mundo andava tão louco.
Para meus gatos, a matilha não causara problemas. Estorvo era a chuva, que caía invisível de não-sei-onde. Talvez brotasse do grande abismo, mas o mundo não terminaria em fogo?! Não vejo nenhum arco-íris no céu. Mas acho que Deus não quebra suas promessas, então sentei-me a esperar pelo fogo.
E um velho amigo de rodas de violão apareceu. Acompanhava-lhe o irmão gêmeo, idêntico, porém mais alto. Este eu não conhecia, e acho que eles também se conheceram naquele mesmo dia. Porém, já andavam como irmãos, no sentindo amplo da palavra. Dei um sorriso e cumprimentei o rapaz, como se fosse meu amigo também. Eu ainda confiava no senso crítico de meu antigo companheiro.
Ele me contava sobre seu desejo de trair, e eu o condenava, pois ele era mais cristão que eu! Enquanto me falava de sua concupiscência, eu vi se formando no céu (para o qual ele dava de costas), um grande ponto luminoso, do tamanho de 10 estrelas juntas. Interrompi seu discurso sórdido e apontei para o fenômeno. Ele virou-se tardiamente, e o ponto apagou antes que pudesse vê-lo.
Tentei procurar explicações para aquilo, em voz alta. Tomei-me de incrível pavor quando vi a presença de uma segunda lua, cheia. E na escuridão, uma mancha azul da cor de "dia" riscava o céu, em movimento.
As nuvens também serpenteavam, ligeiras e cheias de maldade.
Era mesmo o fim do mundo, e meu amigo voltou a ser cristão naquele momento.
Eu entrei em casa e comecei a gritar pelo nome de Deus com o timbre rasgado do desespero.
Na casa ao lado, meu vizinho pervertido ouviu minha histeria, e vestiu suas roupas.
Eu fiquei a olhar para o céu, vendo aquelas dezenas de luas surgirem e desaparecerem. Era bizarro, pois parecia um jogo de luz de discoteca, e eu não conseguia me empenhar na salvação pensando naquela semelhança.
Mesmo em meio aquele terrível cataclisma, eu estava aliviada, pois o fardo de ser pura não estava mais sobre mim. Antes era como uma teia exposta a todos ventos do mundo.
Mais tarde eu ficaria frustrada quando visse que a pureza me estava intacta.

A cópia

Meu corpo está cansado, mas não me permite descansar. Tenho que trocar as bandagens antes que as moscas gordas pousem em minhas chagas, e nela depositem os seus vermes. É um grande fardo carregar o peso de meu próprio corpo em moléstia - preguiçoso, doente, fraco... - e ter que poupá-lo incessantemente da decomposição.
Quando finalmente acostumo com a incômoda carga, surpreendo-me ao pisar no sangue que verte da cópia que carrego nas costas. Minha luta foi vã, e me desespero ao ver que toda a vida ficou para trás! É impossível ver o fim do rastro vermelho quilométrico, assim como repô-lo ao corpo depois que ele fugiu pelos poros da terra.
Ainda assim tento, e as mãos em concha nada mais colhem que um bolo ensanguentado de areia. Não há mais vida, mas tento colocá-la de volta pelos orifícios da vergonha. No templo reservado à concepção, agora há imundície. Não há mais vida, não há. O que conceber quando o útero vira um túmulo? Monstros de areia ou de lama? Enxugo as lágrimas com as mãos sujas. Não há o que fazer, e mesmo assim me iludo. Não há tempo para esculpir figuras! Levanto e as piso. Ponho novamente meu corpo sobre as costas, e o arrastar das pernas no chão remove qualquer vestígios das figuras na areia.  Para trás fica uma trilha vazia, sem legado ou honra. Meu corpo não morreu em batalha, como a heroína que queria ser. Não foi morto pelos fantasmas ou sátiros que me assombravam. Foi morto por vícios, mas foram tantos que não lembro quais. A minha maldição é esta, de me apegar a cada chaga causada por minha própria impotência, e delas cuidar como quem rega um jardim.  





As três

Eu era minha rainha, e minha rainha era Alice de cabelos negros. Aquela trindade parecia perfeita para mim, pois me fazia amar intensamente cada parte de meu corpo e de minha essência.
Eu (que era ela, que era Alice), estava numa casa de paredes cor de rosa. Nelas pendiam duas dezenas de relógios cuco, todos bem ornamentados e em formatos interessantes. Lembro-me de como eram belos os floreios esculpidos naquelas pequenas casinhas de madeira. Passei algum tempo admirando-os, até que todos os ponteiros perfeitamente sincronizados marcaram a hora nova. E pasmem! Em vez de pássaros presos por mola, saíram muitos gatos e coelhos, em disparada. Mas não eram bonecos, ou esculturas, e sim animais vivos, em tamanho real. Era curiosa a habilidade e rapidez com que seus corpos se articulavam para sair dos relógios. E mais digno de admiração era o fato de antes estarem todos lá. Como poderia caber um coelho dentro de uma caixa de poucos centímetros quadrados? Quem dirá dois ou mais.
Eu (que era minha rainha, que era Alice) entendi que também deveria correr, e fugir daquele mal que assustava os pobres animais. Acompanhei-os de pés nus, e quando dei por mim, a cerâmica da casa tornou-se cacos, e depois deu lugar a um frio e boloroso chão de terra. Era noite lá fora, e a vegetação era tão espessa! Eu estava em um bosque, e todos os galhos pontiagudos dos carvalhos apontavam para mim! Eram como dedos acusadores, imputando-me terrível culpa! Circundavam-me como uma funérea guirlanda! Aquilo se tornou claustrofóbico, e o ar, rarefeito. Pela única brecha que havia, pude avistar o céu, e ao longe, um iluminado palácio cor de rosa. Tinha a imponência da arquitetura oriental, e majestosas cúpulas douradas retorcidas como um sorvete. Julguei serem de ouro, pois reluziam um brilho bastante peculiar.
Pensei em refugiar-me naquele lugar. Uma súbita lembrança indicou-me que a câmara dos relógios era lá. Distraí-me ao correr atrás dos gatos e coelhos, e nem percebi que estivera naquele magnífico lugar. Sim! O exterior do palácio tinha o mesmo tom de rosa das paredes dos relógios. Mas antes mesmo que pudesse desenterrar os pés daquela terra movediça, percebi que algo terrível iluminava o céu!
Oh, não!!! Outro pavoroso sinal celeste!!! Quando hei de escapar dessa perseguição covarde? Ou quando serei por fim aniquilada? Qualquer desfecho é melhor que o pavor que me imputam os deuses ao manifestarem sua fúria no céu!
Livrei-me dos galhos, e em um instante estava em campo aberto. Encarei o horrendo prodígio na escuridão. Tinha forma triangular, e era cortado ao meio com uma reta, dividindo-o em dois triângulos menores e iguais. Brilhava em várias cores que desconheço os nomes no espectro da luz. Era como as figuras que se formam por trás de nossas pálpebras quando cerramos os olhos com muito fervor.
Foi adquirindo forma de arco, e percebi que o segmento que o cortava ao meio movia-se. Ele posicionou-se como ameaçadora flecha que os deuses disparariam contra mim. Mais com raiva que com medo, corri para o castelo. Eu não era mais Alice de cabelos negros. Era eu, e minha rainha, em corpos separados. E nós nos beijamos por trás de uma parede. Seu beijo era quente e molhado. Envolver sua cintura importava mais que a fúria de qualquer deus arqueiro.

A porta

Existe uma sala que eu nunca ouso entrar. Lá morreu um gato e eu o tenho por mártir. Quando passo em frente aquela porta quero morrer. Eu posso ouvi-lo miar e se debater contra as estruturas, fazendo o vidro canelado tremer. Asfixia, agonia, inanição. Quando isto acontece, morre uma parte de mim. É uma pena que não mais existam os cemitérios malditos, e todas as ruas sejam encruzilhadas.
Ele não tinha dono, mas também não tinha nome. Seus vocativos eram: “o gato cinza”, “o gato ladrão”, “o infeliz do gato”. Era um jovem pai de muitas crias e poucas posses. Mesmo assim, era bem possível que fosse feliz. Livre eu sei que era. E tinha no olhar o sagrado mistério dos gatos, diante do qual hei de me curvar enquanto viver.
Como puderam não tê-lo ouvido miar? A “humanidade” é assim... Tapa os ouvidos para o sofrimento, mas quando o cheiro podre da decomposição lhe chega às narinas, trata logo de identificar o problema e limpar. Remover a sujeira, o fedor. Os produtos estão aí para isso: desinfetar. E no fim, são poucos os que lembram que já houve um cadáver em determinado lugar.
Como o sangue há de clamar da terra, se o sódio, o potássio e os ácidos graxos cismam em apagar as escrituras sagradas e o crime de Caim? E eu nada mais sou que uma covarde, pois no fundo, evito aquela porta para evitar minha própria dor.

ETERNA MÁGOA – poema de Augusto dos Anjos

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se a...